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2 outubro 2017
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

«Vamos dar uma equipa de saúde familiar a cada português»

​​​​​​​​​​​Henrique Botelho, Coordenador Nacional para a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, acredita que compromisso do Governo vai ser cumprido até ao final da legislatura.

 

REVISTA FARMÁCIA PORTUGUESA: Como vai a reforma?
HENRIQUE BOTELHO: A reforma vai indo.

 
RFP: O que há de importante a acontecer?
HB: A reforma começou por ser, há 11 anos, essencialmente orientada para a área da saúde familiar. Estou a falar dos médicos de família, enfermeiros, secretários clínicos e de todo um conjunto de técnicos e de profissões que era preciso enquadrar. E foi muito bem feita, nesses primeiros anos, 2006 e seguintes, em que se criaram as Unidades de Saúde Familiar (USF). É bom que se diga que, hoje, mais de 50 por cento dos cidadãos portugueses são atendidos nesse modelo organizativo inovador e com elevados padrões de satisfação.

 
RFP: Proximidade, equipa...
HB: Exactamente, trabalho em equipa.

 
RFP: Menos burocracia...
HB: Simplex, até antes do Simplex. Facilidade no contacto, mais autonomia às equipas, capacidade de as equipas resolverem os problemas das pessoas de uma forma mais próxima e mais rápida. A partir daí, há todo um trabalho, que não se vê com tanta facilidade, de consolidação de determinada forma de trabalhar e de integração de outros saberes, outras competências, outros profissionais, por parte dos cuidados primários.

 
RFP: Em concreto?
HB: Estamos a dar passos decisivos na construção das Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC), que são unidades coordenadas por enfermeiros que agrupam múltiplos profissionais, como assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, etc., conforme as necessidades. A incorporação desses novos saberes, em contacto directo com os cidadãos, é absolutamente decisiva. Os hospitais são centros tecnológicos onde um cidadão só deve entrar quando é estritamente necessário e pelo mínimo tempo possível, para regressar à comunidade. A maioria das respostas do Serviço Nacional de Saúde é na comunidade. Ora, isso não pode ser feito só por médicos e enfermeiros.   

 
RFP: Mas não têm sido criadas muitas UCC… 
HB: Estão a crescer, estão a crescer. Já temos um número interessante. Mas há mais: as chamadas Unidades de Recursos Assistenciais Partilhados (URAP), que corporizarão, durante algum tempo, a inserção desses novos profissionais, que tanta falta fazem nos serviços de proximidade. Nós precisamos deles cá dentro.

 
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Henrique Botelho defende a contratualização de objectivos comuns às farmácias e USF, em função das provas dadas em experiências-piloto

 
RFP: Acha possível cumprir o objectivo de garantir a todos os portugueses uma equipa de saúde familiar até ao final da legislatura?
HB: Acho. Acho. Só se houver perturbações muito grandes e não expectáveis é que isso não será possível. 

 
RFP: Não é preciso tornar a carreira de Medicina Geral e Familiar (MGF) pelo menos tão atraente como a de Anestesia, Oftalmologia e outras especialidades?
HB: Claro que sim. E isso é decisivo para a sustentabilidade e qualidade dum sistema de saúde, nesse caso SNS. Nós temos um programa de formação especializado em MGF cada vez mais exigente e estimulante, portanto vamos ter médicos de família, em número suficiente para suprir as dificuldades, dentro de aproximadamente dois anos. Neste momento faltam-nos 536 médicos de família. Durante os próximos quatro anos, vão formar-se anualmente entre 380 a 450 novos especialistas. Se não os desperdiçarmos e se o ritmo das aposentações for conforme expectável - que é os médicos reformarem-se, mais ou menos, aos 66 anos - nós vamos poder dar um médico de família e uma equipa de saúde familiar a todos os portugueses até ao fim da legislatura. 

 
RFP: E enfermeiros? Há dias vi-o a referir que temos um rácio de enfermeiros per capita inferior à média da OCDE. 
HB: Precisamos de mais enfermeiros, claramente. Só que em relação aos enfermeiros há uma situação favorável. Nós temos enfermeiros formados. Não temos falta de enfermeiros, como ainda temos falta de médicos. Aliás, como é sabido, Portugal está a exportar enfermeiros. Houve um dado novo, já com este Governo, que foi a criação da especialidade de enfermagem de família. E isso era uma expectativa já com muitos anos. Daqui a quatro ou cinco anos só admitiremos a trabalhar na saúde familiar enfermeiros com a especialidade de saúde familiar. 

 
RFP: Não vai ser preciso criar mais USF? 
HB: O objectivo é que, no mais curto espaço de tempo possível, o padrão de prestação de cuidados na área de saúde familiar seja em modelo USF. Porquê? Porque em 11 anos demonstrou ser o mais eficiente. Todos os estudos feitos demonstraram que é o modelo organizacional que mais se adapta às necessidades dos cidadãos e mais satisfação cria, quer no cidadão, quer nos próprios profissionais. As USF fazem mais, fazem melhor e, contrariamente ao que muitas vezes se diz, fazem mais barato. Eu acho que é preciso desmontar a ideia errada de que as USF são muito caras. Todas as provas são em sentido contrário. Quando se fala que algo ou é caro ou é barato, tem de se saber qual é o produto que sai.

 
RFP: Então, como explica que o ritmo de surgimento de novas USF tenha caído tanto? 
HB: As USF até hoje têm sido criadas de forma voluntária. A adesão ao projecto USF faz-se através de candidaturas...

 
RFP: É normal que haja um boom inicial, que as elites avancem primeiro…
HB: Exactamente. E isso foi claríssimo. Também é verdade que, a partir do momento em que começaram a surgir as primeiras avaliações, altamente positivas, tenha havido uma segunda vaga.

 
RFP: Por contágio…
HB: Aqueles que eram mais descrentes, não é? É normal que depois dessas duas vagas o ritmo de apresentação de candidaturas seja mais pequeno, por várias razões. Uma delas é o facto dos mais velhos já não se sentiram suficientemente motivados, o que se compreende.

 
RFP: E o ritmo de aprovação? A Associação Nacional das USF diz que é demasiado lento. 
HB: Não, não, não me parece que esse seja o problema maior. O que é mais difícil é apresentar um projecto. Porque as zonas mais atractivas estão cheias. As USF são mais fáceis de instalar em zonas de maior concentração demográfica e mais difíceis de criar no Interior rural, onde predomina a dispersão demográfica e o envelhecimento. As USF são pensadas predominantemente para as zonas mais citadinas? É verdade, mas também era onde estavam 80 por cento dos problemas. E nós temos grande parte deles ultrapassados. O maior constrangimento, hoje em dia, de certa forma incompreensível, é o sistema altamente limitativo de quotas, quer para novas USF, quer para passagem de USF de “Modelo A” a “Modelo B”.

 
RFP: Como resolver o problema, então?
HB: Hoje, o grande desafio é criar novos modelos organizativos. Que tipo de USF se adapta –  ou outro nome, não estamos agarrados ao nome –  a conseguir melhores respostas em situações de contexto de interior, envelhecimento, dispersão demográfica. Se calhar temos que estabelecer mecanismos, incentivos, para que as pessoas possam aderir a trabalhar em zonas mais difíceis, mais inóspitas. Aliás, num concurso para contratação de médicos, aberto ontem, há vagas consideradas carenciadas. E para quem aderir a essas vagas há incentivos, há compensações. 

 
RFP: E que modelo diferente de USF pode ser experimentado no Interior?
HB: Poderá passar pelas unidades móveis. Teremos de adaptar o mais possível o modelo de funcionamento que se pretende: uma equipa médico/enfermeiro, a trabalhar com um sistema de informação. Estamos empenhados na construção das tais unidades multi-polo, onde teremos os profissionais menos concentrados, mais dispersos. Mas é muito importante que eles consigam não perder o sentido de equipa. 

 
RFP: Este é um ponto interessante para passarmos ao tema Farmácia. Embora a capilaridade legal seja 3.000 utentes, há farmácias no Interior com mil e duzentas pessoas na sua área de influência.
HB: Acho que a rede de farmácias deve ser analisada como um motivo de estudo, porque antes da construção de respostas de proximidade na área médica e de enfermagem, já as farmácias desempenhavam bem, do ponto-de-vista organizativo, essa proximidade às populações. Portanto, isso é algo com que só temos a aprender. Mas há aqui um dado preocupante. A partir de determinada altura, a sobrevivência das farmácias nestes contextos de pobreza, de envelhecimento e de dispersão, tornou-se mais difícil. Se é hoje uma preocupação construir e defender as respostas do SNS junto das populações, o mesmo se deve passar em relação às farmácias.

 
RFP: Como acha que se pode fazer isso?
HB: Acho que tem de haver um encontro, um diálogo e uma complementaridade muito grande. O grande desafio do SNS e das farmácias é encontrarem pontos verdadeiros de diálogo e de construção de soluções. Temos de reconhecer que há farmácias que estão com problemas de sobrevivência. A quantidade de farmácias que fecharam, que faliram, foi considerável. E isso não é bom para ninguém, não é bom para as populações, não é bom para o Serviço Nacional de Saúde. Essas questões económicas transcendem obviamente a minha coordenação e até o próprio Ministério da Saúde. São coisas muito mais complexas e muito mais globais, mas têm de ser tratadas  numa lógica de complementaridade, porque as farmácias desempenham um papel muito importante no sistema de saúde português.

 
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RFP: Qual poderá ser o papel da farmácia numa reforma de cuidados de saúde primários?
HB: Por exemplo, numa área que está neste momento muito no centro do debate. As farmácias podem ter um papel muitíssimo importante na área do desenvolvimento dos graus de literacia em saúde dos cidadãos. Evidentemente que isso trará ganhos enormes. Primeiro para as pessoas, para o estado de saúde da população do país. Mas terá ganhos enormes até na afectação dos recursos por parte do SNS.

 
RFP: Pensando nos utentes reais, aqueles que todos nós conhecemos, muitos deles idosos e com um saco cheio de medicamentos, que papel deve ser entregue aos farmacêuticos comunitários, no sentido de melhorar a eficiência na utilização de uma tecnologia em saúde como o medicamento?
HB: O saco de plástico cheio de medicamentos é, de facto, um paradigma dos riscos da administração de medicamentos a partir das prescrições feitas por vários agentes e muitas vezes do desconhecimento desses agentes entre si. O farmacêutico estará numa situação privilegiada para fazer essa gestão porque poderá ter uma visão global desse panorama e uma acção muito pedagógica, muito interventiva, no sentido de evitar acidentes que acontecem todos os dias. O fenómeno do saco de plástico cheio de medicamentos é um perigo real e uma situação que médicos e enfermeiros tentam reduzir ao mínimo. Mas há constrangimentos nesta matéria, desconhecimentos. O farmacêutico aí será o coordenador fundamental de estratégias necessárias a afastar, cada vez mais, o risco da polimedicação não controlada. Por outro lado, o farmacêutico tem de ser um agente fundamental no combate à automedicação por parte dos cidadãos, que muitas vezes sabemos que correm riscos graves.

 
RFP: O presidente da USF-AN, João Rodrigues, defende um modelo em que USF e farmácias se entendam para contratualizar com a administração pública objectivos em saúde comuns, partilhando os resultados. O que lhe parece esta ideia? 
HB: Tudo aquilo que conseguir dar passos no sentido de melhor serviço público é bem vindo. Aqui temos de saber compatibilizar duas realidades diferentes. Um serviço público de prestação de cuidados e uma lógica comercial, empresarial, por parte daqueles que têm um papel absolutamente fundamental na distribuição de proximidade do medicamento, mas poderão desempenhar outros papéis. Há pequenos objectivos que têm de ser definidos e contratualizados. As farmácias podem desempenhar outros papéis no sentido de obtermos ganhos em saúde –  e ganhos em saúde é uma coisa que se mede. São parâmetros que se podem medir, que se podem avaliar.

 
RFP: Parece-lhe uma coisa ainda demasiado futurista, ou já uma necessidade? 
HB: Essa lógica de tentarmos contratualizar objectivos que estão previamente definidos para as organizações do Serviço Nacional de Saúde, com essa rede de proximidade, ligada essencialmente ao medicamento, não me parece assim tão futurista. Eu acho que é algo que se pode começar a construir amanhã. Aliás, este diálogo entre as farmácias e o Serviço Nacional de Saúde vem dando os seus passos.
 
RFP: Já ultrapassámos a era do preconceito de fronteira entre o serviço público e o serviço privado? Acha que os profissionais de um lado e do outro podem comunicar e fazer equipa de saúde? 
HB: Há casos e casos. Nós sabemos disso. Fundamental é que as relações que se estabelecem entre uns e outros sejam de complementaridade e sejam auditáveis, sejam transparentes.

 
RFP: Já se pode fazer uma contratualização de objectivos de saúde pública comuns.
HB: Claro que pode. Não vejo, do ponto-de-vista teórico, qualquer objecção. Como sabemos, no nosso sistema de saúde, a parte mais substancial é o SNS, mas o sistema de saúde não se esgota no SNS. Estamos a falar nisto porque isto ainda não foi feito. Estamos a falar na possibilidade de isto vir a acontecer. A contratualização no SNS é um fenómeno relativamente recente, começou ali no final dos anos 90, com Maria de Belém e Constantino Sakellarides. É um conceito que tem de fazer o seu percurso e que é altamente desejável. Houve avanços e recuos, mas a tendência tem sido sempre crescente, relativamente ao papel que a contratualização pode ter na melhoria do desempenho dos próprios, sejam hospitais, sejam serviços de proximidade –  tudo isso está cada vez mais interligado. Agora, temos de ensaiar as propostas e os projectos, submetê-los a um teste e a uma avaliação, depois fazer as devidas correcções e passar à sua expansão quando demonstram ser virtuosos.

 
RFP: É o coordenador nacional para a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários. Neste papel, qual é o seu maior desejo concreto? 
HB: Deixe-me primeiro recuar um bocadinho. Eu já vi muitos dos meus maiores desejos concretizados. A minha geração assistiu a uma revolução democrática. Quantas gerações podem dizer que viram uma coisa destas? Nós já assistimos a grandes passos ao nível do desenvolvimento social neste país. Na saúde, assistimos à construção de um serviço público que é o melhor serviço público que temos no país. Hoje, quase todo o cidadão português tem a possibilidade de ter serviços de qualidade – e sublinho isto: serviços de qualidade. Os nossos profissionais são cada vez melhores. A formação em Portugal é cada vez melhor. Quanto aos ganhos mensuráveis, à forma como os comparamos com países supostamente mais desenvolvidos, nomeadamente no âmbito dos estudos que todos os anos são publicados pela OCDE, Portugal compara bem, em alguns aspectos compara extraordinariamente bem, com países muito mais ricos do que nós. E não é só na saúde materno-infantil, mas em áreas como, por exemplo, a transplantação, o controlo da diabetes e das doenças do foro respiratórias, para citar apenas algumas.

 
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«Gostaria de me ir embora vendo que o modelo USF se tornou “no” modelo dos cuidados primários»

 
RFP: Daqui a uns anos, o que gostava que se dissesse que aconteceu no seu mandato?
HB: Gostaria de me ir embora vendo que o modelo USF se tornou, não "num" modelo organizativo de prestação de cuidados de proximidade, mas "no" modelo.

 
RFP: O que falta para isso?
HB: Tentarmos fazer a integração daqueles que ainda não trabalham segundo este modelo: em equipa, com objectivos, com avaliação, com um sistema remuneratório sensível ao desempenho.  Corrigir o exagero do alargamento das listas de utentes de 1.500 para 1.900 utentes, sem qualquer tipo de padronização, verificado no final de 2012 e que a realidade demonstrou, como era previsível, fortemente penalizador para a qualidade dos cuidados.   Não me queria ir embora sem ver este processo desenvolvido em todo o país. Até este momento, tem sido voluntário. Tem estado apenas dependente das candidaturas. Mas 11 anos de sucessivas avaliações provam que este é o melhor modelo que conseguimos construir até hoje. Se é assim, não faz sentido que não haja alguma intervenção que leve aqueles que ainda não estão organizados segundo este modelo, a aderirem a ele, mesmo que com uma dimensão negociável das listas de utentes, e consequente remuneração, se essa for a sua vontade.
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