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VIH
30 novembro 2018
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes

Trocamos seringas

​​​​Basta um toxicodependente não ficar infectado para compensar tudo. ​
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Farmácia Figueiredo e Farmácia Adriana -  Coimbra

​Júlio entra na Farmácia Adriana, em Coimbra, passa das 19h. Quase todos os dias o toxicodependente, de 61 anos, vem trocar seringas à Praça da República. Por vezes, traz ovos caseiros para oferecer aos profissionais de saúde.

Instalada no centro da cidade académica, perto da universidade, a Farmácia Adriana mantém portas abertas para a praça já lá vão 75 anos. Entram, sobretudo, jovens estudantes.

Júlio escolheu-a pela «simpatia» de quem o atende. «Tratam-me sempre bem. E tenho vergonha… Se já dei a cara aqui, não quero ir a outro sítio mostrar-me», confidencia.

Agora, está a recuperar as rédeas da sua vida, elogia, a seu lado, o director-técnico da farmácia, João Pimentel. «Até já deixou de fumar». O adicto, como o próprio se assume, confirma, entusiasmado. Há três meses, conseguiu também deixar o álcool.

A proximidade entre ambos é evidente. Júlio gosta de desabafar, João de ouvir. «A solidão mata», continua o toxicodependente. Por isso, quer trabalhar ou tirar um curso de agricultura biológica numa quinta nos arredores da cidade.

Vai buscar comprimidos de metadona ao centro de apoio a toxicodependentes e acaba por injectá-los. «Não consumo nem cocaína nem heroína, só metadona». Tomou metadona mais de dez anos, mas teve recaídas.

«Apologista» do kit "Redução de Riscos", Júlio acredita na sua eficácia. Até porque em jovem sentiu na pele os efeitos da falta de cuidado. «Tive hepatite B. Felizmente, fiquei imunizado mas, a partir daí, nunca mais utilizei seringas de ninguém». Nos dois anos em que o serviço esteve suspenso nas farmácias, preferia comprar as seringas a ir ao centro de saúde.

Na Farmácia Adriana, o Programa Troca de Seringas (PTS) foi retomado em Janeiro de 2017, assim que o Governo reactivou o serviço nas farmácias. Os ganhos em saúde são «imensos», considera o farmacêutico. «Basta um toxicodependente não ficar infectado para compensar tudo, quer o nosso trabalho no dia-a-dia com ele, quer os custos para o Estado». Outra dimensão prende-se com a saúde pública. Perto da Adriana, fica o Jardim da Sereia, um dos locais de tráfico e consumo de drogas pesadas em Coimbra. «Os nossos filhos vão para lá brincar. Pelo bem de todos, temos de contribuir para não se abandonar lá seringas usadas», lembra João Pimentel.

Lugar de passagem, a Praça da República está longe de ser a zona problemática de Coimbra. Essa é a chamada baixa. Ali, convivem mundos paralelos. O mundo de quem trabalha em serviços como a câmara, o tribunal ou bancos. E o outro, dos toxicodependentes, muitos «em fim de linha», como diz Manuela Lopes, coordenadora da Reduz, única equipa de rua na cidade.


Capitolina Pinho retomou o programa assim que o Governo o contratualizou

No Terreiro da Erva, junto à emblemática Rua da Sofia, concentra-se grande parte dos toxicodependentes. Os casos mais complicados. Motivo suficiente para a directora-técnica da Farmácia Figueiredo, Capitolina Pinho, ter decidido implementar o PTS na sua farmácia mal foi retomado.

Pela sua localização, num prédio antigo e exíguo de quatro andares, a Figueiredo tem acesso privilegiado aos dois mundos. A porta principal fica na Rua da Sofia, o rés-do-chão da farmácia, com porta nas traseiras, dá acesso directo ao Terreiro da Erva.

«Havia esta dinâmica na zona», explica a directora-técnica. «Éramos solicitados e sentimos o dever de prestar este serviço de saúde pública, ajudar no bem comum». A porta das traseiras foi aberta aos consumidores de droga para «terem mais privacidade». Porém, «não parece ter muita importância para eles».

É a necessidade de consumir a ditar as regras, sublinha, pelo seu lado, a coordenadora da Reduz, também instalada no Terreiro da Erva. Em Coimbra, precisa Manuela Lopes, a heroína ainda é a substância mais utilizada. «Em 2017, passaram aqui 1.200 pessoas. Mais de metade consome heroína, mas também injecta outras substâncias, como cocaína».


António entra pela porta de trás da Farmácia Figueiredo. Faz a troca de seringas em privado

Com uma abordagem pragmática, focada em minimizar riscos e danos sem julgar, a Reduz segue os toxicodependentes nas zonas em que se instalam – como é o caso do Terreiro da Erva. É aqui que encontramos António, de 54 anos, 24 passados a consumir drogas pesadas. O toxicodependente não poupa elogios ao PTS. «Em Coimbra, víamos seringas no chão. E isso deixou de existir». Ele sempre teve o cuidado de trocar as suas. «Não ia correr um risco desnecessário». Continua a fazê-lo. Ou na sede da Reduz, que também recolhe e distribui seringas, ou na farmácia.


Marco contraiu o VIH a partilhar seringas

Marco, de 51 anos, não tem o mesmo cuidado. Seropositivo, ainda hoje deixa as suas seringas na rua. Agora, lamenta, há poucas farmácias a fazer a troca, «quando antigamente eram quase todas».

Na Farmácia Figueiredo, o atendimento continua como habitualmente. Sara Pereira, farmacêutica de 31 anos, trabalha aqui desde Maio. Já aprendeu a conviver com estes mundos paralelos da baixa. «Este lado mais obscuro contrasta imenso com a outra parte, dos utentes do tribunal, dos serviços. É muito enriquecedor, a nível profissional e pessoal», considera a jovem. «E ajudamos a diminuir as calamidades».

A proximidade com a Reduz ajuda. Os profissionais das duas equipas partilham informação. A missão é minimizar riscos para toda a comunidade. «Temos um trabalho absolutamente complementar», conclui Manuela Lopes.

MILHARES DE JOVENS EVITARAM A SIDA

O Programa Troca de Seringas (PTS), implementado em 1993 por Odette Ferreira, fez de Portugal um país pioneiro no combate ao VIH-sida junto dos toxicodependentes, grupo de risco mais vulnerável. Uma auditoria da Consultora Exigo para a Comissão Nacional de Luta Contra a Sida concluiu que o PTS impediu 7.000 novas infecções por cada 10.000 utilizadores de drogas injectáveis. Garantiu ao Estado poupanças entre 400 milhões e 2.000 milhões de euros. As farmácias prestaram o serviço gratuitamente durante 22 anos. Em Março de 2015, devido à crise, deixaram de reunir condições para isso. O Governo acordou o regresso das farmácias em Janeiro de 2017, remunerando em 2,40 euros cada kit "Redução de Riscos" trocado.

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