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14 setembro 2018
Texto de Maria Jorge Costa Texto de Maria Jorge Costa Fotografia de Ricardo Castelo Fotografia de Ricardo Castelo

«Tem de se remunerar o acto farmacêutico»

​​Eurico Castro Alves fala sobre o valor do papel social das farmácias.
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REVISTA FARMÁCIA PORTUGUESA:​ Está satisfeito com o resultado da Convenção Nacional da Saúde?
EURICO CASTRO ALVES: Estou muito satisfeito. Foi algo inédito porque juntou praticamente todos os operadores da Saúde. Acho que foi conseguido o principal desígnio, que era todos manifestarem disponibilidade para encontrar pontos consensuais para a agenda da Saúde na próxima década. Não terá sido perfeito. Continua a haver pontos de desunião, mas verificámos haver muito mais coisas que também nos unem. Desde logo um princípio comum a todos: querermos manter e melhorar o SNS.
 
Quais foram as principais conclusões?
A principal foi a de ser preciso manter o SNS. Depois, houve outros princípios, nomeadamente o financiamento. Temos de encontrar novas formas de financiamento. Foram apresentadas várias soluções possíveis, mas seria fastidioso estar aqui a elencar. Também se levantou a questão do sector do medicamento e outros que envolvem responsabilidades muito grandes por parte do Estado e, nesse sentido, concluiu-se que será útil haver orçamentos plurianuais.
 
 

 
Que modelo foi encontrado?
Modelo, muito basicamente, é o que temos hoje. Aí estamos todos de acordo. Deve ser aperfeiçoado, comporta múltiplas deficiências e defeitos que têm de ser corrigidos com o tempo.
 
Fazem propostas?
Há claramente necessidade de aumentar o financiamento da Saúde por parte do Estado, faz parte da vida. Temos um bom SNS que tem de ser acompanhado, reformado todos os dias. As pessoas também se vão modificando para adaptar a novas realidades e desafios. Nesse sentido, o SNS tem as mesmas condições. Todos os dias tem de se ir modificando para se adaptar às realidades. Uma dessas modificações é a sua reestruturação. Continua a haver muito desperdício na Saúde, muito dinheiro perdido por motivos fraudulentos. Apesar de muito e bom trabalho que tem sido feito pelos sucessivos governos, há mais para fazer. Esta questão das reformas estruturais tem de estar sempre presente, nunca vai acabar. Como a necessidade de dinheiro nunca vai acabar. Estes dois itens têm de andar de mãos dadas. Pomos mais dinheiro mas temos de reestruturar profundamente e diminuir o desperdício.
 
Não é preciso fiscalizar?
E também fiscalizar, evidentemente. Temos de pensar todos os dias o que é que temos de mudar. Há hospitais para construir. Há outros profissionais, o sector do medicamento, que me é muito caro, tem de ser tratado com muita atenção e cuidado. A despesa pode disparar de um momento para o outro se não houver cuidado em darmos conta das novidades que vão surgindo. Dou-lhe um princípio: aos portugueses não deve faltar o melhor que existe em todo o mundo no que respeita a medicamentos e tecnologias ou dispositivos médicos, ou técnicas de tratamento. Para isso acontecer temos de saber tratar muito bem o que é inovador e o que não é. O sector do medicamento é fulcral e vi com muito gosto que esteve em peso na Convenção. Não vi com surpresa porque conheço bem as associações e sei que sempre disseram presente quando esteve em causa o interesse nacional.
 
 


Disse que vai ser divulgado um documento, que depois será publicado. Vão apresentar um caderno de encargos?
Vamos, este mês, entregar ao Presidente da República um primeiro resumo do documento final. As grandes conclusões e duas ou três pequenas subconclusões, num documento conciso. O resto está a ser trabalhado por um grupo muito grande de pessoas dos diferentes sectores. Num segundo momento será publicado em livro tudo o que de importante foi dito naquela Convenção.
 
A tempo de participar na discussão sobre a Lei de Bases da Saúde?
Também. Mas vou mais longe: gostava que o documento servisse de inspiração para os programas eleitorais. Era muito interessante que o documento viesse a ter utilidade para quem tem responsabilidade de fazer os programas dos partidos políticos na área da Saúde, nos próximos anos.
 
A Convenção reclama planos plurianuais para a Saúde. Não é uma ideia nova, mas nunca foi adiante. Esteve um mês como Secretário de Estado. Deu para sentir a realidade da pressão política?
Apesar de curta, foi uma experiência muito interessante, em que descobri várias coisas. Uma foi a pressão. Outra foi que, independentemente de quem governa, podemos ter as melhores ideias, os melhores projectos, mas quando passamos à fase de os concretizar as barreiras são enormes. Os contrapoderes, os interesses, as diferenças, as dificuldades, as barreiras financeiras. Governar é um exercício muito, muito difícil. Um Governo sozinho tem extremas dificuldades. Pode haver princípios filosóficos e políticos que orientam mais para um lado ou para o outro, mas as divergências não são assim tão grandes. Os dois principais partidos políticos estão de acordo em tanta coisa que valia a pena assumirem eles o passo seguinte: sentarem-se e verem o que que podem fazer em conjunto.
 
Bonito o que está a dizer, mas...
Sim, bonito, mas difícil.
 
Esteve à frente do Infarmed nos momentos de crise económica mais difíceis dos últimos anos. Como foi essa experiência?
Foi difícil, muito trabalhoso, mas extremamente compensador sob o ponto de vista das relações humanas, das dificuldades que tive e ultrapassei. O mais interessante foi lidar com um sector com interesses e tantas influências, algumas até perversas, como sabemos, mas terem mostrado grande elevação naquele momento.
 
Está a referir-se a que interesses?
Falo concretamente, já que estamos a falar na Farmácia Portuguesa, da Associação Nacional das Farmácias e de outras associações do medicamento. Tivemos discussões duras, eu diria até duríssimas, mas nunca faltou o respeito recíproco pela missão de cada um. As diferentes associações souberam perceber o momento que vivíamos, souberam colaborar.
 
Como assim?
O país assumiu com a Troika a responsabilidade de baixar a despesa na Saúde. No caso do medicamento, havia um compromisso e uma obrigação de diminuir em centenas de milhões de euros. Foi preciso muita imaginação e criatividade de forma a garantir que os portugueses não deixavam de ter acesso a todos os medicamentos de que necessitavam. Tivemos – tenho de o dizer, porque é de toda a justiça – a colaboração da indústria farmacêutica, das farmácias, dos farmacêuticos, dos profissionais de saúde. Resultou sobretudo da capacidade de lidar com pessoas que tinham muito a perder (e perderam), mas que souberam estar com sentido de responsabilidade, por terem percebido que estava em causa o interesse nacional.
 
Teve alguma negociação mais difícil? Há uma que nos ocorre logo.
Tive muitas, mas a mais mediática foi a hepatite C. Depois de tanta dificuldade nas negociações, acabámos por ser um país que hoje é citado internacionalmente como exemplo. Conseguimos um excelente acordo e o tratamento ficou acessível a todos os doentes com hepatite C. Tenho de fazer justiça ao ministro Paulo Macedo, que sempre esteve de acordo com esta ideia: conseguir um bom preço, mas ser igualmente acessível a todos os doentes.
 
 

 
O preço do laboratório era elevadíssimo e subitamente houve capacidade para fazer um braço-de-ferro. A pressão da opinião pública deu força ao processo negocial?
Muito pouco. Posso dizer-lhe que quando aconteceu aquele evento tínhamos o acordo praticamente fechado. A opinião pública foi importante mas não tão relevante. O momento na Assembleia da República foi até um bocado injusto para o ministro Paulo Macedo, porque a decisão já estava tomada e o acordo estava feito. Não tínhamos era os timings certos para anunciar e tínhamos obrigação de o fazer. Ficou mesmo contratualizado que o preço era sigiloso e eu, se quer que lhe diga, já passaram estes anos todos e ainda não sei se já posso dizer ou não. À cautela, não digo.
 
Era o que lhe ia perguntar.
Cerca de 750 milhões de euros. Recenseámos todos os doentes que sofriam de hepatite C, pelo menos aqueles que os hospitais conheciam. Havia 13.015 doentes. Para os tratar, gastaríamos os 750 milhões de euros orçamentados em medicamentos para todos os portugueses, se tivéssemos aceite o primeiro preço proposto. Seria uma situação de ruptura total. O acordo permitiu acomodar a despesa sem pôr em causa o sector do medicamento e o orçamento da Saúde. A responsabilidade do Estado é tratar os 10 milhões de portugueses. Fomos dos primeiros países no mundo a chegar a acordo com a companhia e a conseguir tratar todos os doentes com hepatite C.
 
Hoje, há a percepção de que a crise passou. Mas, no caso das farmácias, os números continuam a ser de alarme, as falências e insolvências aumentam.
Deixe-me enquadrar as coisas. O país tem a sorte de ter uma excelente rede de farmácias. Agora não sei os números oficiais, mas na altura tínhamos entre 2.700 e 2.800 farmácias, que não se limitam a vender caixas de comprimidos ou injecções. Por isso são uma componente importante do SNS. As farmácias portuguesas fazem um acompanhamento de proximidade, aconselhamento, vigilância até. É um serviço fundamental, atendendo às características da nossa população, principalmente os mais idosos e desprotegidos. As farmácias têm uma função social que tem de ser muito valorizada e respeitada. Não é assim em todo o mundo. No Infarmed, e depois no Governo, defendi que tudo fosse feito sem pôr em causa este papel importante que as farmácias têm. Dito isto, também achei sempre que o próprio sector teria de se saber reinventar e isso veio a acontecer.
 
O SNS é muito elogiado, mas está há meses debaixo de críticas. O que acha que está a correr mal?
A Saúde é um tema ultra complexo. É o bem mais importante para as pessoas. É natural que o cidadão esteja muito mais atento às questões da Saúde – e também às falhas. Como cirurgião e profissional de saúde, tenho noção, apesar de não vir nos jornais todos os dias, que em Portugal centenas e centenas de milhar de actos de saúde muito bem-sucedidos, cura-se milhares de pessoas. Há imensa coisa que corre bem. Se houvesse uma métrica, eu diria que 90 por cento, ou até 99 por cento, corre bem.
 

 Eurico Castro Alves é cirurgião-geral no Hospital de Santo António do Centro Hospitalar do Porto
 
Quando se vê médicos e enfermeiros, com o apoio das ordens profissionais, a fazerem tantas greves, alguma coisa deve estar a correr mal...
Isso faz parte da democracia. Todos têm o direito de fazer valer os seus princípios e interesses, chamar a atenção para aquilo que está errado. Nem sempre quem governa tem capacidade ou o discernimento de escolher a opção mais correcta – e há coisas que falham. Temos de perceber que vai sempre haver greves.
 
Não é comum ouvir o bastonário da Ordem dos Médicos dizer: «estamos a rebentar pelas costuras»
O papel dos bastonários é também esse. Têm um papel importante de defesa da qualidade dos serviços prestados e, sempre que ela esteja em causa, compete ao bastonário pedir, solicitar, reivindicar. Como compete aos sindicatos acautelar os interesses das carreiras profissionais das diferentes profissões. Essas dificuldades e esses problemas têm a ver com os recursos disponíveis e os necessários. Foram dados passos importantes, melhorou-se as condições de trabalho, os horários, as remunerações. Não estou a defender o Governo, continuo a achar que devia ser outra solução governativa. Isto não tem nada de partidário, tem a ver com reconhecer uma realidade e a maneira como se lida com ela. 
 
Está optimista a esse respeito?
Olho para o futuro com apreensão, não sou naïf. Se nada se fizer podem acontecer coisas muito más, o SNS pode ficar em causa. Daí todos terem percebido que era importante a Convenção Nacional para sublinhar que não podemos pôr em causa a sobrevivência do SNS. A questão das farmácias é fundamental. Temos de fazer reformulações, reestruturações, os preços têm de ir sendo revistos, uns terão de baixar. Outros, provavelmente os mais novos, não terão de baixar assim tanto, mas sobretudo tem de se encontrar formas de remunerar o acto farmacêutico. Não pode ficar em causa a sobrevivência do sector nem o serviço que as farmácias prestam. Para quem decide, tem de haver esta preocupação de orientar os preços de maneira a que o Estado possa gastar o menos possível, de forma mais inteligente, sem pôr em causa este bem superior, que é o excelente serviço farmacêutico.
 
As farmácias continuam no Interior, em muitos locais onde fecharam extensões de centros de saúde e outros serviços. Muitas vezes são o único serviço de saúde próximo de populações isoladas. Deveriam ser remuneradas por isso?
Dever, deveriam, porque todo o trabalho útil deve ser remunerado. Falta saber se é possível, e isso é competência de quem está à frente do leme. O trabalho é útil e tem valor económico.
 
Tem de ser assumido pelo poder político?
Tem de ser assumido, penso que o poder político reconhece isso. São os tais pontos em que todos estão de acordo.
 
Concorda então com a portaria de serviços nas farmácias?
Não só concordo como acho que pode ser desenvolvida. As farmácias são um referencial de segurança para o doente. As pessoas quando têm dúvidas, ou quando não têm acesso ao seu médico, recorrem à farmácia por ser uma fonte de informação credível. Isto é muito importante para os portugueses. O cidadão sabe que se for à farmácia perguntar ou procurar um serviço, aquilo que lá lhe for dito ou for fornecido é seguro e de confiança.
 
Como vê o projecto-piloto de administração de medicamentos anti-retrovirais nas farmácias?
Em Portugal temos aquela máxima: Em equipa que ganha não se mexe. Há um conjunto de princípios que vão dar muito bons resultados. É muito importante o doente ter acesso ao medicamento, mas também à informação, de uma forma que não lhe complique muito a vida. Esses passos têm sido dados, têm bons resultados e não estão a aumentar a despesa. As coisas estão a ser feitas com racionalidade, mais uma vez com muito boa vontade por parte das farmácias. Quando temos operadores do sector com sentido de responsabilidade, sem ter o tal retorno que seria o mais justo, não tenho dúvidas nenhumas de que estamos a fazer esse caminho. E as farmácias estão a dar cartas no contexto internacional, porque, do que conheço noutros países, nós somos dos melhores exemplos no que respeita à relação da farmácia com a população, em termos de serviços e de valor acrescentado. Além da dispensa do medicamento.
 
 

 
Como vê os projectos em comum entre unidades de saúde familiar (USF) e farmácias?
Vejo com enorme entusiasmo. A relação que o médico tem hoje com o farmacêutico não é igual à que havia há dezenas de anos. As coisas mudaram, a interacção e trabalho de equipa são muito maiores e a comunicação tem de ser maior. Quem não perceber isto não vai ter sucesso profissional.
 
Falemos do homem Eurico Castro Alves. Conte-nos um bocadinho quem é, a sua infância, influências. Era um miúdo que brincava na rua, que deu dores de cabeça aos pais?
Tenho uma história normalíssima, não é interessante. Fiz tudo o que uma criança faz. Dei dores de cabeça aos meus pais, fiz as minhas asneiras. Cresci no Porto, nasci na Rua Senhora do Porto e hoje vivo na rua São João do Porto. Mais portuense é difícil.
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