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17 novembro 2017
Texto de Rita Leça Texto de Rita Leça Fotografia de Alexandre Vaz e Pedro Loureiro Fotografia de Alexandre Vaz e Pedro Loureiro

Serviço à prova de fogo

​​​​​​​​​As duas farmácias que arderam em Outubro levantaram-se das cinzas de imediato.

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«Dona Matilde, bom dia! É para a farmácia ou para a Junta?». «Para a farmácia, se faz favor».

Matilde Baptista caminha, acompanhada pelo marido, os poucos passos que separam a entrada da Junta de Freguesia de​ Lajeosa do Dão do balcão improvisado da farmácia, e pede o mais urgente. «Creme gordo ou vaselina para tratar os animais feridos».

São 10h da manhã de terça-feira, 17 de Outubro, ainda estamos a viver o rescaldo do grande incêndio na zona Centro do país. O fogo arrasou o investimento de vida de Hugo Ângelo, farmacêutico e proprietário da Farmácia da Lajeosa do Dão. Na pequena vila, de 2.000 habitantes, morreu um septuagenário. O senhor Hermínio correu o que pôde para salvar o cão e as ovelhas. Foi encontrado carbonizado, abraçado ao fiel amigo.

A farmácia, situada na Rua Senhor do Calvário há mais de dez anos, ficou completamente destruída. Mas já está outra vez ao serviço, de modo improvisado, na Junta de Freguesia. Horas após o incêndio já disponibilizava os medicamentos mais urgentes à população da vila e arredores, maioritariamente envelhecida. Paracetamol, anticoagulantes, anti-hipertensores, compressas e pomadas para queimaduras estão no topo da lista de prioridades. Mas há, também, que pensar nos animais.

«A Dona Fernanda perdeu mais de 100 ovelhas! Eram o seu sustento», comenta-se no café vizinho, onde ninguém conseguia acreditar no que acontecera, tantas eram as más notícias.

«A Dona Alzira perdeu as ovelhas, os cães, os barracões e as ferramentas», desabafa uma mulher. «Olha, salvou-se-nos a vida!», responde outra.

No caso de Matilde Baptista, o estrago também foi grande: «Queimou-se tudo… menos o tractor e o atrelado», confessou-nos.

Ao balcão da farmácia improvisada, inteirou-se do que precisava para tratar os animais que sobreviveram. «Cada produto custa 2,5 euros. Quer que encomende? Então passe cá, outra vez, às 17h», diz-lhe a técnica auxiliar de farmácia Cláudia Loureiro, visivelmente cansada depois de ter passado o dia anterior a tentar remendar os estragos do incêndio. Foram horas a fio, noite dentro, a mudar caixotes, malas, sacos e medicamentos para o piso superior do edifício da Junta. «Ninguém abandonou o barco. Mas só de manhã é que percebemos o verdadeiro estrago».

Foi, aliás, Cláudia Loureiro quem avisou Hugo Ângelo que a farmácia estava em chamas. Mas, antes, teve ela própria que enfrentar o monstro que ameaçava devorar aquilo que lhe é mais precioso. «A minha casa e a dos meus pais estiveram em risco. Felizmente, conseguimos controlar a situação e não perdemos tudo», desabafa, enquanto escreve o nome de Dona Matilde numa folha
A4 branca.



«Como não temos sistema informático, não há forma de efectuar o pagamento. Registamos o nome das pessoas a quem cedemos os medicamentos e, mais tarde, eles virão cá
pagar». Em menos de cinco horas, a folha ficará repleta, com cerca de duas dezenas de nomes, entretanto em dívida.

«Depois de um susto destes, há muita gente a recorrer à farmácia, a única nas redondezas. Há pessoas que perderam tudo. A casa, os bens e os animais», explica-nos Hugo Ângelo, entre mais um telefonema aos fornecedores. Chega muita gente com queimaduras, mas também muitos doentes crónicos cujos medicamentos arderam. «Já veio muita gente hoje», explica o farmacêutico, enquanto escreve num papel o plano de tomas de José Nascimento Silva e da sua mulher.

À saída do edifício da Junta de Freguesia, este utente conta-nos o que lhe aconteceu. «Ouvi um vento muito forte. Parecia o Diabo! Já era de noite e decidi fechar tudo e deitar-me». Uma decisão rapidamente reavaliada. «Uma fagulha deve ter atingido a pouca lenha que tinha e originou o fogo. Queimou-me tudo! Só tive tempo de ir buscar a minha mulher, que está acamada, e fugir dali».

O filho, que mora em Lisboa, chegou esta manhã para ajudar. Mostra-nos as fotografias que, entretanto, tirou com o telemóvel. Cozinha e sala em ruínas, fachada da casa queimada.

José Nascimento Silva vive agora, temporariamente, no hotel das Caldas de Sangemil. «Ainda não tive coragem de voltar a casa», confessa, sem conseguir controlar mais as lágrimas, que lhe escorrem pelo rosto cansado. Na testa, a ferida da luta ingrata que travou noite fora, tratada no Hospital de Viseu; nas mãos, trémulas, o saco com os medicamentos, a maioria de toma obrigatória para ele e para a mulher.



«Até os óculos… Estes, foi a óptica que me emprestou. Nem tive tempo de tirar os meus de dentro de casa», diz-nos, a apontar para a cara, enquanto o filho lhe põe a mão no ombro, num gesto de contenção. «Vamos embora, pai, temos muito que fazer». Na despedida, José olha-nos, como quem pede esperança. De agora em diante, «será um dia de cada vez».

«Estou desolado com o que aconteceu à minha farmácia. Mas depois vejo estas pessoas que perderam tudo e percebo que não posso parar», admite Hugo Ângelo, a caminho da farmácia ardida.

À entrada, a bata queimada, junto a um corrimão, denuncia o que ali aconteceu. «O fogo veio das traseiras e queimou tudo». Computadores feitos manteiga, dezenas de produtos de cosmética, medicamentos, fraldas e material de escritório sem outro destino senão o lixo.

«Agora tenho de encontrar as facturas de tudo, contabilizar e tratar com a seguradora. O arquivo fiscal dos últimos dez anos ardeu. Sei que vai demorar muito até ter tudo como era antes», lamenta o farmacêutico.

O sentimento de impotência perante o desvario das chamas parece ter ocupado toda a vila.

Tânia Milhães, grávida de 29 semanas, técnica auxiliar da Farmácia da Lajeosa, emociona-se ao falar-nos do que acabara de viver. No carro, sozinha, no centro do Largo do Corujeiro, passou horas de pânico e aflição extrema. Não sabia se os pais estavam bem, se a quinta com os animais estava em segurança e se o próprio marido, bombeiro, chegaria a casa são e salvo.

«Decidi parar o carro, porque percebi que já não podia sair dali. Eu apitava e ninguém vinha. Via as luzes das casas acesas, mas ninguém apareceu!». Foi a mãe que a foi buscar e a levou para a casa de uma vizinha.

A noite foi passada em claro, à espera do marido, que só chegou de madrugada. Poucas horas depois, Tânia já estava na Junta, a desencaixotar o material da farmácia. «Durante toda a noite, pensei: “amanhã vai ser um dia normal”, para me tranquilizar. Mas, não é verdade! Nada é normal! E vai demorar muito tempo até voltar a ser», diz-nos, com as mãos a tremer.

Percorremos 62 quilómetros de terra queimada para o Interior, em direcção a Melo, no concelho de Gouveia, freguesia de 500 habitantes onde nasceu e está sepultado o escritor Vergílio Ferreira. A Farmácia Central também ardeu. Só ficou de pé a fachada, carbonizada. No final de terça-feira, troncos velhos de madeira ainda ardiam no interior do edifício. Isabel Coelho, proprietária da farmácia desde 1989, não consegue esconder a tristeza e o desespero.

«Foi horrível! Choviam bolas de fogo! A meio da noite, de domingo para segunda, o bombeiro Henrique disse-me: “A sua casa está salva, mas a farmácia… não posso prometer”», relata a farmacêutica, limpando com um lenço as lágrimas que caem sem controlo.

«O fogo rodeou a aldeia. Se o vento não tivesse cortado, tínhamos morrido todos», diz, por sua vez, Gabriela Dias, vizinha da farmácia, moradora há 48 anos. O seu filho, Henrique Dias, bombeiro, tornou-se o herói de Isabel Coelho. «Ele atravessou as chamas e ainda conseguiu Quem é que não tem um momento da vida de que se arrepende? tirar a balança de altura e a máquina dos testes de colesterol ». Foi tudo o que sobrou da farmácia. Por aqui, ninguém escapou ileso. O próprio bombeiro perdeu 200 árvores e um tractor. «Estava preocupado com o cão, mas sobreviveu».

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O incêndio desceu pelo telhado da farmácia, antigo e revestido a madeira, e queimou tudo. O serviço de saúde ficou reduzido a cinzas, mas conservou o mais importante: a solidariedade das pessoas. «Vêm ter comigo e dizem: “Doutora, estou a dever-lhe dinheiro do medicamento tal”», conta Isabel Coelho, com a voz embargada de reconhecimento.

A farmacêutica sentiu que não podia falhar às pessoas naquele momento desesperado. É por elas que, no dia seguinte, juntamente com as técnicas auxiliares Beatriz e Isabel, começa a refazer os gestos profissionais, afinal imunes ao fogo. Na Junta de Freguesia, uma sala ampla foi revestida por um esqueleto de ferro que, depois, acolheu os lineares e estantes da farmácia, versão improvisada. E nem as obras tinham começado, já chegavam os utentes. «Todos sabem que nos mudámos para aqui. Vêm pedir medicamentos urgentes e perguntar se precisamos de ajuda», explica Isabel Coelho.

Sem sistema informático e pouca rede no telefone, a equipa da Farmácia Central, em Melo recorre ao esquema alternativo de dispensa que já vimos em Lajeosa do Dão. Os doentes levam os medicamentos de que precisam, com uma anotação num papel para virem pagar mais tarde. A solidariedade de farmácias de todo o país e o plano de emergência  ​​accionado pela ANF animam a equipa e facilitam a instalação. «À tarde, vem uma equipa montar os computadores com o Sifarma», explica Isabel Coelho.

A directora-técnica gere também um posto farmacêutico na aldeia limítrofe de Folgosinho. São 14 quilómetros de viagem num cenário de cinzas, meia hora de carro do espectáculo sinistro da natureza carbonizada.​

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O horário de abertura é às 10h30. Em cinco minutos o posto está cheio de pessoas. «Vim buscar os comprimidos para o meu marido. Ele teve um enfarte há dois anos e tem de tomar os medicamentos à hora certa. Felizmente, aqui no posto havia tudo o que ele precisa», conta Glória Oliveira, 77 anos, que «nunca tinha visto desgraça assim». Beatriz Nunes, técnica-auxiliar, atende o mais que pode naquelas condições. Quando os pedidos ultrapassam o pouco que há em stock, começa a agendar a posterior entrega dos medicamentos,
no posto ou em casa dos utentes. É comum voltar a Folgosinho ao final do dia, após o expediente, para fornecer, porta a porta, os fármacos de que as pessoas precisam. «São pessoas de muita idade, que não conseguem ir a Melo», explica Beatriz.

À saída da aldeia, uma carrinha branca da MEO passa por nós, devolvendo-nos a esperança de uma possível normalidade. Seguimos caminho pelas aldeias vizinhas, o chão ainda
fumega, há postes de electricidade em chamas e hectares de árvores completamente negras.

Em Vouzela, o único estabelecimento que abriu no dia a seguir ao incêndio foi a farmácia. «Pusemos toalhas no chão para evitar que as cinzas entrassem, mas não parámos de trabalhar. O Sifarma não funcionava, mas felizmente havia luz», lembra a farmacêutica Carolina Teixeira Brinca. ​

«As pessoas começaram a entrar cheias de cinza e com os olhos tão vermelhos como nunca tinha visto. Algumas tinham perdido tudo. Então, fui a casa dos meus avós, que infelizmente morreram este ano, buscar as roupas deles.Nunca pensei que o gabinete da farmácia se tornasse num provador de roupa», conta Carolina, já com os olhos humedecidos e a voz a tremer de emoção. «Foi o momento mais impressionante que já vivi».

Depois, fala-se novamente de solidariedade. Os amigos trouxeram mais roupa, os bombeiros acolheram os desalojados e disponibilizaram cobertores e lençóis. «Uns dez utentes meus ficaram só com a roupa do corpo e estão, temporariamente, em lares», estima Carolina Teixeira Brinca. Nestes dois dias, mais de uma dezena de pessoas, de aldeias vizinhas, vieram experimentar ou buscar roupa para familiares. «Uma senhora veio levantar medicamentos para a tensão e trazia uns chinelos tão gastos que quase lhe caíam dos pés. Dei-lhe os da minha avó, que eram três números acima, mas que ela aceitou com um enorme sorriso».

No domingo fatídico, as máscaras para proteger o rosto esgotaram. O farmacêutico de serviço foi chamado três vezes durante a noite, para fornecer leite a um bebé e disponibilizar tranquilizantes aos utentes com problemas cardíacos. Muitos dos remédios foram cedidos. Dois dias depois, ainda havia quem saísse da farmácia com medicamentos​  ​emprestados. «Não conseguimos dispensar as receitas electrónicas, mas ninguém sai daqui sem o que precisa», garante Carolina Teixeira Brinca.

​Em Oliveira de Frades, o fogo chegou ao centro da vila e dezenas de pessoas refugiaram-se na farmácia. Temeu-se o pior. «Todos ficaram em pânico. As chamas estavam perto, havia estradas cortadas. Um casal ficou fechado no carro. Nas casas, explodiam coisas. As chamas estavam a uns 100 metros. Achávamos que a farmácia podia arder», lembra o farmacêutico Henrique Fraga.

Dias depois, as comunicações ainda eram um problema. «O receituário electrónico tem vindo a melhorar gradualmente, os telemóveis funcionam, mas com muitos cortes. O telefone fixo e o Multibanco ainda não funcionam», sintetiza Purificação Silva, a directora-técnica da Farmácia Pessoa. 

Problema idêntico abrangeu também a vila vizinha de Nelas. Um utente, sem comunicações em casa, recorreu ao telefone da Farmácia Faure, para avisar o filho, que vive em Lisboa, de que estava a salvo. «As pessoas recorrem muito a nós. Até para pagar as contas, muitas vêm aqui», explica José Rodrigues, ajudante técnico. Na segunda-feira logo a seguir ao incêndio, foi ele quem abriu a farmácia. «Cheguei atrasado porque muitas estradas estavam cortadas». A farmácia encheu-se de gente. A procura de máscaras e líquidos
para os olhos esgotou a capacidade de oferta. «Tive de repor stocks», lembra.

Os utentes ainda estão em choque. Muitos fazem o luto. Passado o inferno, cada dia é de reconstrução de um quotidiano. As farmácias continuam lá, onde ardeu quase tudo.​



327 FARMÁCIAS DE SERVIÇO

rede de farmácias reforçou o serviço às populações devido à crise dos incêndios. Na noite de segunda feira, 16 de Outubro, pelo menos 327 farmácias ficaram de serviço nocturno
na região Centro. A prestação de serviço farmacêutico foi fortemente condicionada em muitos locais, devido ao fumo e calor intenso.

Os cortes de estradas e a inoperacionalidade de redes de comunicações também condicionaram o serviço farmacêutico. Na manhã de segunda-feira, 87 farmácias estavam sem comunicações. Os concelhos de Arganil, Góis, Tondela, Gouveia, Oliveira do Hospital, Tábua, Oliveira de Frades, Seia e Vouzela permaneceram afectados vários dias. Milhares de utentes foram atendidos a crédito, com registo manual das dispensas.

A ANF activou o seu plano de emergência para garantir a continuidade da assistência farmacêutica às populações vítimas dos incêndios. Foi garantido «o reforço do fornecimento de produtos essenciais à população e bombeiros, com a extraordinária colaboração do sector grossista e da indústria farmacêutica», de acordo com comunicado da associação.

Na quinta-feira, subsistiam alguns problemas pontuais, mas a rede de farmácias estava de regresso à normalidade. A ANF enviou uma mensagem de «encorajamento e enorme admiração aos profissionais de farmácia que têm estado a viver este drama, bem como a todos os profissionais de saúde e protecção civil no terreno». Em comunicado, as farmácias expressaram «profunda solidariedade às populações afectadas».
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