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8 fevereiro 2019
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Os polícias das farmácias

​​​​​​Como o Grémio tratava a prática de descontos.

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Durante duas horas e meia, os dois homens mantiveram-se "de sentinela" na Rua de São Julião, em Lisboa, de olhos postos na sede do Banco de Portugal. Não, não eram militares em missão fora do quartel, nem sequer polícias de giro. Eram "polícias", sim, mas do Grémio Nacional das Farmácias (GNF). Competia-lhes detectar «qualquer fornecedor de farmácias, armazenista ou laboratório, com medicamentos para os empregados no referido banco». Segundo o relatório submetido à Direcção, nesse dia 3 de Março de 1969 a vigilância foi infrutífera. «Não vimos entrar qualquer pessoa com embrulhos que denunciassem ser medicamentos», informou o fiscal António Gonçalves Baltazar.

Este modelo de funcionamento, que visto à distância adquire contornos policiais, tinha cobertura legal. O Decreto-Lei n.º 48 547, de 27 de Agosto de 1968, regulador do exercício da profissão farmacêutica, proibia expressamente a concessão de «descontos, comissões, benefícios ou bónus» sobre os preços. Os funcionários da área da fiscalização do Grémio apareciam sem aviso nas farmácias. Habilitados a levantar autos de notícia, chegavam a ser acompanhados por agentes policiais. Era frequente actuarem em conjunto com fiscais do Sindicato Nacional dos Farmacêuticos ou da Comissão Reguladora de Produtos Químicos e Farmacêuticos.



Já em 1958, na circular n.º 4, de 12 de Maio, o GNF avisara os agremiados de que os descontos, além de ilegais, consubstanciavam concorrência desleal, quer fosse consumada directamente ao cliente, quer através de vendas em larga escala a empresas e instituições ou do “fornecimento colectivo” de receituário para vários doentes. Só os beneficiários da Federação das Caixas de Previdência e Abono de Família usufruíam de redução no preço, fixada em acordo. O boletim oficial do Grémio identifica farmácias punidas, com penas de advertência, censura ou multa. Em alguns casos, também por dispensarem medicamentos fora dos horários autorizados, «à porta fechada ou encostada».

A celebração de «acordos ou contratos com quaisquer entidades, em que se estabeleça a total ou parcial exclusividade do fornecimento de medicamentos», é proibida a partir de 1965. A 20 de Maio desse ano, o Grémio informa as farmácias infractoras de que, no limite, podem ser excluídas do organismo corporativo, o que significa fechar as portas. Não logra, contudo, estancar o fenómeno. Prova disso é que um ano depois sente necessidade de conceber um «plano para debelar a concorrência desleal, através duma campanha de prestígio das farmácias a efectuar junto do grande público».

Apostado em combater o que apelidava de «vícios do consumo», através de publicidade em órgãos de comunicação e da distribuição de informação aos consumidores – brochuras sobre educação sanitária, por exemplo – prometia diligências prévias «de flagelação» de farmácias, drogarias e armazenistas prevaricadores. Talvez para deixar de ser letra morta, o princípio acabará vertido no já citado decreto de 1968: são «contrários à dignidade e à moral profissional todos os acordos ou convenções que tenham por fim especular sobre a saúde pública ou partilhar a remuneração dos serviços farmacêuticos com terceiros».

Centenas de relatórios depositados em arquivos de correspondência – como os assinados por António Baltazar em 1968 e 1969, quando Maria do Castelo, futura presidente do GNF, detinha na Direcção o pelouro da fiscalização – revelam pressões externas, condutas pouco éticas das farmácias e truques usados para as apanhar em falso. Numa reunião de fiscais com representantes das farmácias da Guarda, em 1969, soube-se que todas, uma em cada mês, forneciam medicamentos com desconto a um organismo mutualista da cidade. O esquema teria sido imposto sob a ameaça de que, se não o aceitassem, seria instalada uma farmácia privativa, o que lhes causaria ainda maiores prejuízos financeiros.



Nem os clientes escapavam aos raides fiscalizadores. Abordados, com frequência, ao saírem das farmácias, em plena via pública, alguns invocavam acordos de pagamento no final do mês, de que os funcionários duvidavam. «Não é de acreditar, visto constar que a referida farmácia faz 20% aos seus clientes e a outros, o que já foi provado por mim mais do que uma vez, nos autos que levantei», regista um fiscal em Fevereiro de 1969.

O Grémio recorria a jovens ou a adolescentes, que serviam de isco. Alcunhados de “pilotos”, eram enviados às farmácias para tentarem aviar receitas com desconto. Era essa a missão de Manuel António, que entrou para o Grémio em 1971, com 15 anos. Ainda hoje se lembra de um episódio que lhe ficou atravessado. «Os medicamentos custavam 110 escudos e eu disse que a minha mãe só me tinha dado 100. O farmacêutico aceitou e foi levantado o auto. Nesses casos, eu tinha de ser testemunha». Custava-lhe passar rasteiras – «eles agiam de boa fé e eram multados» – mas não tinha alternativa. 

Provavelmente, tais armadilhas despertaram a ira dos atingidos. Refutando a acusação formulada por uma farmácia, de que a fiscalização andava «andrajosamente vestida» e recorria a subterfúgios, um relatório de Agosto de 1969 assegurava que não era solicitada a venda de medicamentos «por caridade ou favor». Depois de fornecidos – feito o embrulho e a conta – é que se solicitava um abatimento. «Se é recusado, o comprador pede desculpa e retira-se, dizendo que assim lhe não interessa comprá-los». Nem mais!
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