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2 agosto 2019
Texto de Vera Pimenta Texto de Vera Pimenta Fotografia de José Pedro Tomaz e Anabela Trindade Fotografia de José Pedro Tomaz e Anabela Trindade

O último castelo vivo

​​​​Em Agosto, a cidade regressa à Idade Média, com festa de arromba​​​​​

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Centro histórico de Santa Maria da Feira, 8h da manhã. Alguns feirenses de passo apressado aconchegam-se nos seus casacos. A brisa do Norte é implacável, mesmo nos meses mais quentes.

No Largo Camões, a Igreja Matriz ergue-se imponente no seu estilo maneirista. A seu lado, desenha-se o Convento dos Lóios, guardião de uma parte considerável da memória histórica e cultural da região. Rodeiam-no jardins até perder de vista, pintados pelas árvores que serpenteiam o caminho até ao ponto mais alto da cidade. Lá no cimo, o castelo continua a vigiar a terra, qual soldado que não abandona a frente de batalha.


As ruas, enfeitadas de bandeirolas de mil cores, são palco permanente de espectáculos

Nos primeiros dias de Agosto, a praça central ilumina-se. Tabernas de aspecto medieval enchem o espaço, prometendo iguarias típicas para todos os gostos. As ruas, enfeitadas de bandeirolas de mil cores, são palco para a mostra e venda de produtos de inspiração medieval. Miúdos e graúdos envergam vestes de antigamente, adornadas com espadas e coroas.

«Na Viagem Medieval vão deparar-se com o inédito» – avisa o director-geral do evento, Paulo Sérgio Pais – «é uma experiência em todos os sentidos: nos cheiros, nos sabores e nos conteúdos dos espectáculos». O ambiente convida a entrar nesta máquina do tempo, que em 2019 regressa ao século XIV, para viver a época do “Belo” e “Inconstante” D. Fernando I. 

A cada edição, o festim recria um reinado diferente, numa odisseia histórica vivida na primeira pessoa. «Há uns anos decidimos fazer um reset no tempo e voltar à fundação da nacionalidade. Começámos com D. Afonso Henriques e, a partir daí, a cada ano evoluímos no reinado», explica Paulo Pais.

Os visitantes chegam de Norte a Sul, para explorar as zonas de recriação medieval, ver os espectáculos de rua e participar nas actividades lúdicas, como o tiro ao arco, que durante duas semanas transportam a cidade para a Idade Média. A viagem culmina com o cortejo real em direcção ao castelo. 


«O nosso castelo é o mais bonito do país», afirma o farmacêutico Nuno Lima, que nunca perde uma festa medieval

O farmacêutico Nuno Lima, natural da freguesia feirense de Fiães, é visitante assíduo desta viagem histórica. A cada ano, junta família e amigos numa experiência sempre diferente. Mas garante a terra que o viu crescer tem muito mais para oferecer. 

«Sempre estive bastante ligado à Feira», recorda. A farmácia, como a cidade, está-lhe no sangue. «Desde miúdo que passava o dia entre os medicamentos e essa paixão ficou gravada». Foi por isso que, há 23 anos, abraçou o projecto de família e começou a trabalhar na Farmácia Central de Fiães.

Aos 47 anos, recorda com carinho a infância que passou em Santa Maria da Feira. E aconselha a visita, com paragem obrigatória no seu lugar predilecto da cidade: «O nosso castelo é o mais bonito do país». 

Com uma arquitectura militar distinta, o monumento mais emblemático da região já conheceu todo o tipo de propósitos. Ao longo do tempo, foi castro de ocupação romana, palco de estratégias de luta pela independência, fortaleza contra invasores e residência senhorial.


Lá no cimo, o castelo continua a vigiar a terra, qual soldado que não abandona a frente de batalha

Hoje é procurado pelo seu interesse histórico e actividades educativas levadas a cabo pela Comissão de Vigilância, responsável pela gestão há 110 anos. Com o desenvolvimento turístico do Porto, o Castelo de Santa Maria da Feira tem vindo a estar no radar de curiosos de todo o país e até de Espanha. À entrada, um pequeno filme faz a apresentação do local, preparando o visitante para a vasta lição de História que o espera no místico caminho de torres, salas e corredores medievais.  

«As pessoas gostam muito de visitar o castelo» – conta Joana Lopes, assessora da Comissão – «como não temos guia, estão mais à vontade para explorar o espaço durante o tempo que quiserem e até brincar com as crianças na Praça de Armas». Como bónus, podem regalar-se com uma vista panorâmica de cortar a respiração. 


No centro histórico, em cada esquina há vislumbres do castelo

Em qualquer esquina do centro histórico há vislumbres do castelo – até nas montras das pastelarias, onde se erguem notáveis pães doces de quatro torres, que não se encontram em nenhuma outra parte do país. 

Nuno Lima conta que a fogaça surgiu em 1505 como pedido a S. Sebastião, padroeiro de Santa Maria da Feira, para proteger o povo da peste que atingiu a região. «É por isso que a 20 de Janeiro temos a Festa das Fogaceiras», explica o farmacêutico, acrescentando que este feriado municipal é uma das tradições mais antigas de Portugal. 


Nuno Lima conta que a fogaça surgiu em 1505 como pedido a S. Sebastião, para proteger o povo da peste​

No Museu Vivo da Fogaça, o aroma a limão e canela perfuma a sala, denunciando uma fornada de fogaças acabada de sair do forno. Os olhos deambulam pelas decorações que adornam as paredes e perdem-se nas vidraças carregadas de doçarias capazes de encantar até os mais cépticos. 

Os balcões exibem frascos de bolachas caseiras e garrafas de licor de Chamôa. O proprietário, Carlos Moreira, conhece bem a história do licor da região, invenção de um amigo seu. «Diz-se que é inspirado na história da paixão proibida de D. Afonso Henriques pela galega D. Chamôa Gomes». 

As paredes ao fundo da sala compõem uma galeria com quadros de artistas da terra. Do outro lado, um pequeno palco apetrechado de instrumentos musicais é um convite aos audazes que a ele queiram subir. Os clientes estão habituados a ser surpreendidos nesta fogaçaria que, algumas noites por semana, dá as boas-vindas a profissionais e amadores de música e de poesia. 

A cara por trás do projecto é um feirense de 48 anos, que um dia acordou e decidiu aprender a fazer fogaças, por respeito à tradição. A arte aprendeu-a aqui e ali, com os padeiros mais experientes da terra. «A fogaça é a identidade gastronómica da Feira» –sublinha Carlos Moreira – «por isso somos fundamentalistas da receita original, mas gostamos de fazer as nossas brincadeiras». 


Fermento, farinha, água, açúcar, ovos, canela, sal, limão e manteiga: os bastidores da Fogaça​

Nas diferentes variações, a fogaça pode ser rainha, princesa, cortesã ou imperatriz. Com um membro de cada sabor, está formada a corte das fogaças. Na hora de escolher, cada feirense tem a sua preferência. Adepto da versão original, o farmacêutico Nuno Lima aconselha-a torrada com manteiga, a acompanhar uma bebida quente. «É boa o ano inteiro, mas no Inverno parece que sabe ainda melhor», brinca. 

Apaixonado pela Feira, Carlos Moreira explica que preservar a História é também reinventá-la. E remata: «A fogaça tem de estar viva nas pessoas». 


O Museu do Papel é único em Portugal

Nem só de pão vive a história da indústria da região. No Museu do Papel, instalado numa antiga fábrica da indústria papeleira, o visitante é convidado a “pôr as mãos na massa” e a participar em todo o processo de fabrico de uma folha de papel. «É uma experiência muito interessante», afirma Nuno Lima. 


O visitante é convidado a participar em todo o processo de fabrico da folha de papel​

Dividida entre a fase de produção manual e a industrial, a visita é um passeio a começar em 1822 e a terminar em 1989. Pelo caminho, podem esperar-se peripécias e curiosidades da época. É o caso dos inúmeros instrumentos adaptados de outros propósitos para a produção de papel – prova de que o bom português é mestre na arte do improviso.

 Inaugurado em 2001, na localidade de Paços de Brandão, concelho de Santa Maria da Feira, o primeiro museu do país dedicado à história do papel desafia os visitantes a sair da sua zona de conforto e passar um dia diferente. O lema é preservar as memórias, criando novas.

 Em Terra de Santa Maria, à hora de almoço, em cada canto pode encontrar-se um belo prato português. Como a francesinha de influência portuense, de fama intocável na região. Mas, para os bons apreciadores de uma experiência imersiva na gastronomia tradicional, a porta do Tasqueiros Sem Lei está sempre aberta. 


No restaurante Tasqueiros Sem Lei, os amigos partilham os pratos. Não se liga a televisão

Na ardósia, as sugestões do dia: Caldo verde, bochechas de porco, alheira à brás e filetes de polvo panado. Para completar, um extenso menu de iguarias à portuguesa, como a clássica tábua de queijos e enchidos ou o bacalhau. 

A acompanhar fica a garantia de um bom vinho português, numa carta que que reúne garrafas escolhidas a dedo nas adegas dos pequenos produtores do país. Para os mais gulosos, há uma placa onde podem consultar as “lambarices” do dia. Entre o leite-creme, o bolo de noz e o pudim de fogaça, o mais difícil é escolher. 

Quando conceberam o espaço, Alexandre Mota e Catarina Oliveira quiseram que as pessoas sentissem que estão a comer em casa dos avós. Conseguiram-no com o ambiente tranquilo a meia-luz, com fado de fundo, as travessas em barro e, claro, a comida que aquece o coração. 

Nesta tasca não se liga a televisão, mas há noites em que os clientes podem ter a sorte de degustar o jantar ao som de música ao vivo. A rústica decoração da sala é, como a comida, uma ode aos sentidos. Num espaço em que os pratos sabem melhor partilhados, no embalo de uma conversa entre amigos. 


Nos claustros do Convento dos Lóios, o Grupo de Danças e Cantares Regionais do Orfeão da Feira está em ensaios

Nos claustros do intemporal Convento dos Lóios, o Grupo de Danças e Cantares Regionais do Orfeão da Feira está em ensaios. Homens, mulheres e crianças de todas as idades vestem trajes cosidos à mão, inspirados nas vestimentas do início do século XX. 

«Um dia destes, a curto prazo, teremos os membros do grupo trajados como se fossem réplicas exactas desse período», revela o director, Fábio Pinto. Fundando em 1975, o grupo é orgulhosamente filiado da Federação de Folclore Português há treze anos. 

 


Desde então, «as cantigas e os trajes são constantemente repensados, de modo a aproximar-se ao máximo daquela que era a essência dos serões e espadeladas do linho na nossa região». O grupo garante, assim, a preservação dos usos e costumes de Santa Maria da Feira, deixando uma boa dose de alegria nos lugares por onde passam. 

Ao som de cantigas de outra época, evocam-se memórias da terra. E nas paredes do monumento ecoam décadas de história. O sino da Igreja Matriz toca as oito badaladas. O sol já se põe. Em tom de despedida, as Cantadeiras d’Antanho erguem voz e alma aos céus: 

Aí vem o luar 
Por trás dos pinhais 
Adeus meu amor 
Para nunca mais

 

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