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24 novembro 2017
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes

O pincel de Deus

​​​​A vida de João Almiro não parece deste mundo.​

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João Almiro de Melo Meneses e Castro raiou no dia 24 de Junho de 1926, em Canas de Sabugosa.

– S. João Baptista lhe dê nome e o abençoe, que nasce no seu dia.

O parto foi em casa, mas com assistência profissional. O pai e um tio eram médicos, de todas as especialidades, como tinham de ser os médicos há cem anos. Pelo lado da mãe, nem era  preciso auxílio. Nada mais natural para Maria Máxima de Melo Menezes e Castro do que dar à luz. João foi o quinto de oito filhos, seis rapazes e duas meninas. Todos nasceram saudáveis e só uma morreu na infância, o que superava largamente as taxas de sobrevivência da época. Para além disso, Máxima era senhora de casa grande, habituada a comandar jornaleiros na apanha da azeitona e nas vindimas das quintas da família.

No Porto foi noite de festa popular, católica pelo lado do Baptista, pagã nas fogueiras, alhos porros e ramos de cidreira, símbolos antigos da fertilidade. E como o menino João haveria de ter filhos! E também convulsões na vida. Não havia um mês, em Braga, no dia 28 de Maio, o Congresso Mariano desaguou no golpe militar que deitou abaixo a Primeira República. No concelho de Tondela, alguns juntaram-se à marcha sobre Lisboa. A maioria continuou a cavar a terra e a semear família. A aldeia estava em expansão demográfica: chegou aos 2.500 habitantes nos anos cinquenta, antes da Guerra do Ultramar e de mudar de nome para Canas de Santa Maria. Aos domingos, as missas eram manifestações de fé, mas também grandes festas populares a que o menino João ficou fiel para sempre.

O doutor Augusto Rodrigues Almiro corria a Serra do Caramulo a cavalo, aos domicílios. Era um João Semana. Os pobres pagavam com galinhas, batatas e outros presentes nascidos da terra. Os pobres de todo com um sorriso e um louva a Deus. Ele não tinha medo da pneumónica nem de deitar mão a nada. No consultório de casa montou marquesa para cirurgia. O menino João escondia-se para espreitar o progenitor coser braços e pernas com o desembaraço das bordadeiras do linho. Quando era apanhado, levava um ralhete, mas não desistia. Sonhava ser médico e microcirurgião. Tropeçou no facto de dois irmãos terem chegado antes ao diploma de Medicina. Como se não bastasse, uma irmã arranjara para marido outro do mesmo curso.

– Já há médicos a mais na família. Vais para farmacêutico, que nos faz aqui mais falta.

Como se prova com o caso de João Almiro, naquele tempo os pais sabiam sempre o que era melhor para os filhos. Liceu em Viseu, curso de Farmácia em Coimbra. Não era o melhor aluno, mas também não falhou, nem aos exames, nem à boémia. Conheceu repúblicas, cafés e tabernas, ganhou uma trupe de amigos. Na Queima das Fitas, o grupo dele comandava a borga. Mal dormidos e bem bebidos, subiam ao comboio sem bilhete. Uma vez, ele chegou à estação da Figueira da Foz, para a garraiada, montado no tejadilho da locomotiva. Foi nessa época que aprendeu a fugir à polícia e a compreender a espécie humana de maneira superlativa.

– Não há rapazes maus. Quem é que não tem um momento na vida de que se arrepende? Quem é que não tem?


João Almiro acena no tejadilho da locomotiva. Tinha chegado à Figueira da Foz, para a garraiada da Queima das Fitas

Conheceu a mulher, Maria Ruth de Oliveira Lopes Morais Abrantes, na Faculdade de Farmácia. O casamento foi fértil em filhos, duas raparigas e cinco rapazes. Parece uma história repetida, mas a verdade é que morreu uma das meninas, aos 18 meses, de doença cardíaca. Em 1953, o casal adquiriu por trespasse a antiga Farmácia Ribeiro, em Campo de Besteiros, e fundou a Farmácia Almiro, que ainda lá está. Ruth mandava no balcão, João no laboratório. Ela era relações públicas, ele um estudioso obsessivo. Tornou-se cúmplice dos melhores médicos de Coimbra, o que lhe permitiu recuperar centenas de alcoólicos e muitos outros doentes.

João fez-se um farmacêutico sem medo. Experimentava os seus medicamentos manipulados no próprio corpo. Numa ocasião, arriscou fazer uma transfusão de sangue directa entre dois doentes. Hoje seria preso, na altura salvou vidas. Sócio da Federação Internacional dos Farmacêuticos, João Almiro é capaz de ser o farmacêutico português com mais congressos internacionais no currículo. Nessas viagens pelo mundo, gastava mais dinheiro em livros do que em hotéis. No regresso do Congresso Mundial de Farmacêuticos de 1986, em Helsínquia, não descansou enquanto o CEDIME não lhe arranjou as referências para chegar ao “Handbook of Injectable Drugs”, de Laurence A. Trissel. Leu a Bíblia e livros científicos a eito, até a vista não poder mais. Como resultado, não distinguia os conceitos de Farmácia e Ciência e aboliu a última fronteira entre Saúde e Serviço. Aos 70 anos, ainda frequentava cursos de formação contínua na escola da ANF. Tinha uma gama inesgotável de interesses: Dermofarmácia, Farmacoterapia, Plantas Medicinais, Medicamentos de Uso Veterinário, Toxicodependência. Nesta área sempre deu cartas. Resgatou ao vício dezenas, talvez centenas de vidas.

– Eu olho os toxicodependentes nos olhos. Passaram tantos pelas minhas mãos que, pela cor dos olhos, pelo brilho dos olhos, sei logo se têm cocaína, se têm heroína.

Quando o casal se separou, ainda nos anos sessenta, João Almiro ficou com seis filhos a cargo: Tito, José, Maria João, Pedro, João e Jorge. Não hesitou quanto ao método educativo, de regras e valores precisos. Na casa de família, ninguém tocava na sopa antes de dizer a Ave Maria.


Ruth e João Almiro no dia do seu casamento, em 1 de Setembro de 1951. Os noivos estão atrás, em quinto e sexto lugar, rodeados dos irmãos de ambos​

​De Maio a Outubro, todos rezavam o terço na hora de ir para a cama. Nas férias, as manhãs eram para trabalhar no laboratório, com quantidades diárias de produção individual estipuladas à partida. O trabalho dos seis almiros durante o Verão tinha de garantir, entre outros, o stock de bisnagas de vaselina esterilizada para o ano inteiro. Era um produto de grande consumo porque protegia os trabalhadores dos arrozais das picadas das sanguessugas.

João Almiro tinha esse lado rigoroso, mas também outro mais afectivo. Talvez tenha aprendido com os filhos a educar como se fosse um irmão mais velho. Levou-os a viajar pelo Mundo, «para lhes abrir os olhos». Acolhia com gosto, na casa de família, os amigos deles. Vinham em bandos. Ajudavam a despachar o trabalho no laboratório para poderem ir mais cedo para o rio. Decididamente, João Almiro tinha jeito para a rapaziada e era sensível à alegria. Até contraiu um empréstimo bancário para financiar a instalação sonora da Sweet Love Band, sensacional grupo de baile que chegou a abrir espectáculos para o Quarteto 1111. Tito, o primogénito, conduzia a carrinha e tocava bateria, o filho José era o guitarra ritmo. Beatles, Stones, Doors. Nenhum deles poderá jamais esquecer-se disso.

- Aquilo é que era música.

João Almiro construiu um pequeno império. Se contarmos os postos farmacêuticos, instalou seis farmácias  ao longo da vida. Nas traseiras da primeira, num fim do mundo chamado Campo de Besteiros, criou um dos maiores laboratórios portugueses de produção de medicamentos. Labesfal é o acrónimo de “Laboratório de Especialidades Farmacêuticas Almiro”. Montou a primeira fábrica da marca e tornou-se o maior exportador português de soro fisiológico. A meio da vida, deixou o negócio aos descendentes.

– Como farmacêutico, tratei de evoluir e me desenvolver, para me impor. Impus-me. Depois dediquei-me aos outros. 

Neste ponto, chegamos à parte da biografia mais conhecida, mas também àquela que não é possível iluminar na sua verdadeira extensão. Para relatarmos o que João Almiro fez pelos outros teríamos de ouvir muitas centenas de pessoas a quem ele mudou a vida. Era o melhor português vivo. Outros portugueses ajudam miseráveis, sem eira nem beira. Ele vivia com eles. Já depois dos 90 anos, de muletas, continuava a sair de casa para visitar ladrões e assassinos em prisões de todo o país. Vários juízes confiavam-lhe os jovens mais difíceis, que só ele poderia regenerar.


Marina e Francisco são dois dos incontáveis netos do coração. João Almiro salvou a mãe deles, que viveu até aos 3 anos encarcerada num curral

Tinha um método falível, mas com sucesso e provas dadas em muitos casos. Fazia, cada um deles, sentir-se valorizado. João Almiro procurava sempre o melhor de cada ser humano e puxava por isso. Acolheu em casa, até ao último dia, trinta a quarenta almas errantes, com vidas abafadas pela prostituição, abusos sexuais, doenças do corpo e do espírito, droga, álcool e crime. Ao pequeno-almoço, distribuía por todos tarefas domésticas e no campo, para os manter ocupados. Obedeciam-lhe e respeitaram-no sempre. “Roubava” à farmácia para os alimentar. Preparava-os até se sentirem com coragem para irem à vida. A maioria voltava e tornava a ir.

– Conhece as andorinhas?

Falta um aspecto, de capital importância. João Almiro falava como um profeta, em pleno século XXI. Deus, proclamava sempre, era o Pintor das obras que realizou ao longo da vida – e ele, João, um pincel. D​izia coisas verdadeiras como as pedras, simples e sublimes como os lírios do campo. Tinha ataques frequentes de pensamentos maravilhosos. Acordava de noite e parava o carro de repente na berma da estrada, para os assentar num cartão ou qualquer pedaço de papel. Depois, como escreveu um dia, vivia como pensava. Para o autor destas linhas, foi ele O Índio, anunciado na canção de Caetano Veloso.

– E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos, não por ser exótico
Mas pelo facto de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio.


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