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19 março 2018
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O papel histórico do Elephante

​​​​Arquivo documental da rede de farmácias vai ser aberto à sociedade.

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​Seis farmacêuticos da Avenida da Igreja, em Lisboa, cometem o supremo atrevimento de enviar uma carta ao «ilustre catedrático e presidente do Conselho de Ministros», que de baptismo tomou o nome de António de Oliveira Salazar. Com a ‘corda ao pescoço’, queixam-se dos elevados encargos que têm de satisfazer, da autorização de instalação de novas farmácias no bairro de Alvalade, da venda ilegal de medicamentos pelos Serviços Médico-Sociais e caixas de previdência. A cópia disponível só identifica os signatários, sem as respectivas assinaturas. Embora a data não conste, há indícios suficientes de que a missiva seguiu mesmo para S. Bento, em Março de 1955. Não sesabe é se obteve resposta.

Pulemos duas décadas. Em Junho de 1974, está a democracia ainda a agitar-se na incubadora, um grupo de jovens filiados no Grémio Nacional das Farmácias apresenta em Assembleia-geral um “caderno reivindicativo”. O documento, da autoria do chamado “Grupo de Cascais”, acabará por tornar-se a “cartilha política” da futura Associação Nacional das Farmácias (ANF). A maioria dos subscritores – nomes como João Cordeiro, João Silveira, Luís Teodoro ou Maria Manuela Teixeira–virá a adquirir protagonismo.

Os dois documentos, preservados no acervo da ANF, estão entre os milhares a disponibilizar online, na sequência da organização e digitalização do arquivo histórico da rede de farmácias e da ANF. O projecto foi baptizado de Elephante, por invocação da Pharmacia antiga e do animal que simboliza a memória. Quando estiver concluído, permitirá a qualquer cidadão – e, em especial, a investigadores – o acesso a informação indispensável para a reconstituição da história do sector farmacêutico.

Para fazer nascer o Elephante, a ANF celebrou um protocolo com o Instituto de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. O IHC tem experiência neste domínio, tendo organizado os arquivos históricos do Comité Olímpico e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Nos próximos anos, dois bolseiros com formação em Ciências Documentais e um bolseiro com formação em História vão trabalhar sob a coordenação científica de Ana Paula Pires e técnica de Paula Meireles.

Um dos componentes principais do projecto consiste na redacção de uma monografia sobre o Grémio Nacional das Farmácias, que representou os empresários farmacêuticos a partir de 1939 e seria extinto já em 1975. Para o efeito, o núcleo de investigadores recorrerá à documentação da ANF, mas também de outras fontes e arquivos.

 
Uma monografia sobre a História do Grémio Nacional das Farmácias faz parte do protocolo celebrado entre a Universidade Nova de Lisboa e a ANF

​O nome Elephante simboliza ainda a grande dimensão do projecto. Só da Quinta das Janelas, em Óbidos, foram transportadas para a sede da ANF 129 caixas, contendo pastas de documentação do Grémio, e outras 25 com livros e jornais antigos. Este espólio foi já submetido a uma intervenção de limpeza e eliminação de humidade. O arquivo da rede de farmácias vai integrar outras grandes colecções. Em Palmela estão depositados 9.000 dossiês, em perfeito estado de conservação. No Sistema de Gestão Documental, plataforma digital da ANF, criada em 2008, há 220 mil documentos. O ANFOnline, portal de comunicação da ANF com as farmácias associadas, reúne 300 gigabytes de informação, com destaque para as circulares, newsletters, fotos e vídeos dos últimos 14 anos.

A ambiciosa intervenção no âmbito do Elephante compreende a investigação, com metodologia científica, da evolução do sector em momentos cruciais, como a regulamentação do exercício profissional, desde as embrionárias tentativas, consubstanciadas num decreto de 1929, até à lei de bases da propriedade de farmácia, de 1965, passando por um decreto de 1933 que a restringiu aos farmacêuticos. Daí o recrutamento de bolseiros, um dos quais com formação em História Contemporânea, ao nível de mestrado. Uma equipa interna, reunindo diversas valências, está já a acompanhar o desenrolar do processo. Está previsto o levantamento bibliográfico e legislativo do sector, bem como de espólios iconográficos e fílmicos.

A colecção completa da revista Farmácia Portuguesa será a primeira a ser digitalizada. A digitalização implica um trabalho de análise e classificação dos documentos. A releitura da revista, desde o primeiro número, permitiu já elaborar uma cronologia detalhada e 100 biografias de personalidades que se destacaram no sector da Farmácia.



A primeira fase, de tratamento e organização do acervo, inclui o material de arquivos físicos. O material em suporte electrónico será incorporado num segundo momento. A concepção de um sistema de arquivo da ANF e a digitalização de documentos corresponde à terceira fase do projecto, que também contempla o tratamento e a inventariação do espólio fotográfico.

«Respeito pela nossa História». É numa frase simples, embora carregada de significado, que o ​presidente da ANF inscreve a principal motivação do empreendimento. Na sequência da aposta na cultura, materializada no Museu da Farmácia, concentram-se agora esforços na História das farmácias e da ANF, «um espaço onde ainda não tínhamos investido tempo, dedicação e massa crítica». Objectivo: «proporcionar a quem vier a seguir mais condições para a estudar».

A participação da academia é, para Paulo Cleto Duarte, fundamental. «Fizemos coisas bem-feitas, mas sempre fechados. Esta é uma forma de abertura do conhecimento técnico e científico a um público mais vasto, com vista a despertar a curiosidade de investigadores pela História, que não se reescreve». 
Consciente de que à valorização da memória se alia a oportunidade de não repetir erros – «só por isso, já vale a pena» – mostra-se cauteloso. Não interessa acumular informação, mas avaliar a sua relevância e garantir a preservação «do que não se pode perder». Nessa medida, «o apoio técnico é imprescindível, porque permite perceber o que tem mesmo interesse histórico».

«O grande risco de um povo – e isto não tem nada a ver com nacionalismos – é esquecer a sua História. O mesmo acontece com as profissões, que têm tendência para acabar se isso acontecer». Quem assim fala, sabe do que fala. Lopes Ribeiro, antigo secretário-geral da ANF, é do tempo do Grémio.

Conheceu-lhe as virtudes e os defeitos, na estreita margem de manobra concedida a uma instituição que exercia funções por delegação do Estado. Sabe bem avaliar o seu papel no controlo do açúcar e do álcool no período de racionamento, durante a II Guerra Mundial, questão a que Ana Paula Pires se refere, em entrevista nestas páginas.

A expectativa de Lopes Ribeiro é que o projecto valorize a vertente profissional do sector. «Antigamente, não havia a veia do comércio que existe hoje», observa. Não é nostalgia; é a convicção de que há lições no passado à espera de serem aprendidas, dimensão que torna particularmente relevante o envolvimento da universidade. «Os grandes actores já não estão. Tentemos pensar sobre o que fariam se cá estivessem», aconselha.

A exemplo do que sucedeu quando, no início dos anos 1980, nasceu a ideia de criar o Museu da Farmácia, acredita que os farmacêuticos se entusiasmem e enviem documentos. Ele próprio conservou alguns. A primeira «folha de apuro de caixa» do dia em que abriu a sua farmácia, em 1968, regista o dinheiro recebido: 1.300 escudos.


A correspondência do Grémio com milhares de farmácias do continente e ilhas mantém-se intacta

A conservadora do Museu aplaude a iniciativa, que permite «preservar documentos em risco de se perderem definitivamente, porque em alguns casos estão acondicionados em más condições». Neste sentido, sublinha Paula Basso, o que está em causa é «salvar, literalmente, a memória documental do passado recente das instituições».

Aos seus olhos de historiadora, o Elephante comporta três dimensões indissociáveis: «preservar, estudar e divulgar à sociedade – no fundo, o papel dos centros de documentação». O facto de extravasar as fronteiras do mundo dos farmacêuticos, numa perspectiva de partilha de conhecimento, é essencial. Paula Basso não deixa, ainda assim, de salientar a complementaridade com o Museu, que incorpora a História das farmácias na das ciências da saúde.


Manuel António mantém organizadas mais de 3.000 pastas, com documentos que remontam aos primórdios do Grémio Nacional das Farmácias

O homem que aguarda a história de cada farmácia

Funcionário há 47 anos – entrou para o Grémio, então presidido por Almeida Nifo, em 26 de Janeiro de 1971, e foi depois integrado no quadro da ANF – Manuel António discorre sobre a criação do arquivo digital rodeado de armários onde estão depositadas pastas individuais de cerca de 3.000 farmácias, numa sala do Núcleo de Gestão de Informação. Não tem dúvidas de que vai agradar aos farmacêuticos. Quando fazem consultas, ficam surpreendidos com o manancial de documentos, que em muitos casos contêm informação que eles próprios desconheciam.

Manuel António assegura que, em regra, não há nada de natureza privada nas pastas. Talvez nas de farmácias mais antigas, admite, possam surgir elementos sensíveis. Entre propostas de inscrição, facturas e registos de mudança de propriedade, há documentos guardados acerca de processos disciplinares e multas aplicadas a farmácias, por violarem os horários de abertura fixados ou fazerem descontos a clientes, sem cobertura legal.​​
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