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28 março 2017
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O menino Gigi

​​​​​Na infância, viveu dois anos ao cuidado de um família de farmacêutico.​

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Nas noites em que as crises de asma não o deixavam dormir, os desvelos da “mãe Margarida” redobravam. Com o menino “Gigi” ao colo – carinhosa alcunha dada pelo pai, João Soares – a matriarca da família Maldonado Freitas passava noites inteiras acordada, num vaivém constante pelo corredor da “casa da Praça”, nas Caldas da Rainha. Foram muitas as noites em branco. «[Mário Soares] viveu em casa da minha avó, num prédio muito grande. Ele era asmático juvenil e a minha avó passava quase a noite inteira, quase todas as noites, a passeá-lo no corredor… tinha imensos ataques de asma», descreve Custódio Freitas. 

Estava-se nos anos 30 do século XX, teria Mário Soares, o histórico chefe de Estado que faleceu a 7 de Janeiro, entre oito e dez anos. O pai, João Soares, deportado para os Açores pelo regime, pedira ao amigo Custódio Maldonado Freitas, farmacêutico a morar com a família nas Caldas da Rainha, personagem de vulto na luta revolucionária, que lhe acolhesse o filho. Ficou quase dois anos.

​«O Soares veio para cá devido a uma relação muito íntima, afectiva mesmo, e política do pai, o professor João Soares, grande pedagogo, distintíssimo professor dos Pupilos do Exército, com o meu avô. Tiveram um percurso político paralelo: o meu avô vem de uma estrutura feudo-aristocrática e o professor João Soares sai de uma estrutura eclesiástica para ir também para o processo maçónico e revolucionário – é aí que está a génese da Primeira República. O professor João Soares e o meu avô faziam intentonas», descreve, entusiasmado, o neto Custódio, a quem Soares tratava por “Tó”. «Como se fazia no PREC [Processo Revolucionário em Curso]. Eram idealistas…». 

​Fraterno, o farmacêutico Custódio não apenas acedeu ao pedido do amigo como tratou Mário, conhecido na família Freitas por “Gigi”, como um dos seus filhos. O mais velho, António, foi o pai do homem que hoje desfia as memórias do clã, Custódio, pai de Margarida Maldonado Freitas. «Mário Soares conviveu com a geração que me antecedeu: os meus tios e o meu pai. O meu pai era o mais velho», conta.

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Durante a estada nas Caldas da Rainha, Mário completa a instrução primária e faz o exame da quarta classe. Mas a sua formação vai muito além da escola. Conta Custódio: «As laterais da casa davam com as traseiras da Farmácia Freitas e ele ia ver as [fórmulas] galénicas do meu avô. O professor João Soares mandava os amigos – Álvaro Lapa, Jacobetty Rosa e outros – para o ensinar... Isto dá que ele começa a ter uma iluminação. O primeiro gajo que aparece é o Agostinho da Silva. Posteriormente, era Álvaro Cunhal. É uma formação com uma base muito grande, porque a acção democrática social era constituída por Maria Teresa Aboim Inglês, Gustavo Soromenho, Mário Sérgio, Gustavo Azevedo Gomes, António Sérgio, Câmara Pina, Manuel Mendes, que era a grande figura… Torna-se um sítio em que ele percebe que tem uma segunda família».

Nunca perdeu as ligações: «Até ao final dos anos 60, manteve uma relação contínua connosco. Chamava aos meus tios e ao meu pai “manos” e à minha avó “mãe Margarida”».

Mais tarde, continua o guardião da memória da família, «o pai do Soares entendeu, em conjunto com o meu avô, que era muito dinâmico nisso, que a colónia balnear de férias do Colégio Moderno [que João Soares fundou] deveria vir para a Foz do Arelho. No Colégio Moderno, 80%, 90% dos alunos eram das colónias. Angola, Moçambique, Guiné… Ao ter uma vivência da Foz do Arelho, numa fase evolutiva, quando chega àquela idade a seguir à adolescência, entra na dinâmica do contestatário».

Na juventude continuou a visitar as Caldas. Tinha lá um grande amigo, Manuel Duarte. «Era carpinteiro de mobília, um homem do Partido Comunista. Foi quando começou a adesão do  Soares às juventudes comunistas. Levou-o o Guilherme Cabreiro. Começaram a percorrer de bicicleta aqueles lugarzinhos da Foz do Arelho para fazer a chamada notificação, a divulgação do MFA (Movimento das Forças Armadas), do civismo. Quem controlava o PC era Piteira Santos, grande amigo do Soares, o António Barreto e o Figueiredo, o Francisco Ramos da Costa. Com Tito de Morais, cria a Acção Socialista Portuguesa. Veio para a Foz do Arelho porque o Soares o chamou. E a Foz torna-se um centro cultural giríssimo, com os amigos e companheiros do Soares».

Nesse tempo, era comum ouvir «David Mourão Ferreira, no Hotel do Facho [na Foz do Arelho, poiso por excelência da família Soares nas estadas na Foz], a dizer poesia. O Afonso Costa filho, o Francisco Ramos da Costa, o Humberto Lopes…».

Lugar de paragem obrigatória nas Caldas da Rainha nesses tempos foi o «Café Central, referência da oposição em Portugal. Vinham todos. Soares esteve preso no Aljube com o pai. Com o meu tio, com o Vasco Pereira de Almeida, com o Júlio Pomar, que faz depois o mural que está no Café Central… Tenho cartas do Pomar a dar os orçamentos».

Quando o “pai Freitas” morre, em 1964, Soares está exilado em França. «Escreve uma coisa lindíssima, chamada “Fogo Solto”. Fá-lo com o coração. E isso é muito difícil no Soares, porque ele era um homem muito racional, que escondia a sua vulnerabilidade».



Quando morreu o “mano António”, pai de Custódio, Soares conseguiu vir. «Achei-o muito emocionado. Estava no cemitério e foi invectivado por um jornalista para falar. Ele olhou para ele com olhar muito duro e disse: “Uma pessoa da família não fala”».

Outra memória que mostra a imensa ternura e proximidade com a família é a da morte da “mãe Margarida”, em 1986, aos 94 anos, que muito o desolou. «Pediu: “Por favor, não façam nada enquanto eu não chegar e não vir a mãe Margarida”, conta a neta que lhe herdou o nome, na pastelaria Machado, onde começou há horas esta viagem a uma história de família que é também parte da história de Portugal. Esta era a pastelaria preferida do antigo chefe de Estado. É onde se encontrava com os amigos, onde parava de cada vez que visitava as Caldas. «Veio cá na sua última candidatura às presidenciais. Vem para o Machado e pergunta por mim: “O Tó?” Tenho quase 71 anos, mas ele ainda me tratava por Tó». À sua filha, bisneta do farmacêutico Custódio, tratou sempre também «com uma ternura especial. Perguntava-me pelas pessoas que tinha conhecido cá, como estavam. E gostava muito de dar-me conselhos», conta a sempre sorridente Margarida Maldonado Freitas, que tomou conta da farmácia da família.

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​Mário Soares nunca esqueceria a casa que o acolheu, as pevides da Foz que adorava e os amigos da juventude. Nem durante a Revolução dos Cravos, nem enquanto primeiro-ministro, nem tão-pouco depois, enquanto Presidente da República.
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