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15 abril 2016
Texto de Pedro Veiga Texto de Pedro Veiga Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

O arado do senhor reitor

​​​​​​​​​​​​​​É médico de formação, investigador por vocação e reitor por decisão. António Rendas lidera os destinos da UNL desde 2007. Explica o mandato com uma metáfora agrícola. Ele arou o terreno para que o conhecimento possa continuar a ser semeado no futuro.

​REVISTA FARMÁCIA PORTUGUESA: Ganhou mais visibilidade como Reitor da Universidade Nova de Lisboa e presidente do Conselho de Reitores das Universidades Médicas, mas nem toda a gente sabe que estudou Medicina. Ser médico foi sempre a sua vontade?

ANTÓNIO RENDAS: É quase um lugar-comum: sou filho de um médico e isso teve sobre mim enorme influência. Mas devo ser dos poucos filhos de médico que não escolheram a mesma especialidade do pai – era urologista.

RFP: Interessavam-lhe outras áreas?
AR: Sim, a minha área de estudo era as doenças respiratórias. Contudo, a minha vocação foi sempre mista, entre a Medicina e a Investigação. Entrei na faculdade em 1966, numa altura em que se começava a dar grandes passos na investigação biomédica. Fascinavam-me os modelos de Watson e Crick do ADN, o código genético, as aplicações da Biologia à Medicina… Por isso, embora querendo ser médico, e tendo percorrido esse caminho, tive sempre a preocupação da Medicina ligada à investigação biomédica.
Quando acabei o curso, em 1972, metade dos colegas escolheu fazer o na altura chamado “estágio da prática clínica”, em Santa Maria, outra metade, na qual me incluí por considerar que tinha necessidade de treino clínico, foi para os hospitais civis. Entretanto, candidatei-me a uma bolsa da Fundação Gulbenkian, ganhei, e fui para Londres fazer investigação em circulação pulmonar. Mas repare: não fui para um instituto de investigação, fui para o Royal Brompton, que era o hospital das doenças do tórax. Estive lá seis anos.
 
RFP: Encontra uma realidade completamente diferente no Reino Unido.
AR: Sem dúvida. Dou-lhe um exemplo disso, muito evidente: na equipa, em Londres, era eu a pessoa que falava com os doentes no sentido de obter o seu consentimento informado. Acontece que esta figura, em Portugal, não existia! Cá, nós praticávamos os mais variados actos médicos nos doentes sem necessidade do seu consentimento. A Medicina portuguesa era já muito boa, mas do ponto de vista das técnicas, da relação médico-doente e da ética, estava, de facto, muito atrasada.

 
RFP: Do seu currículo faz ainda parte uma passagem pelos Estados Unidos da América.
AR: Sim. Doutorei-me bastante cedo e tive a enorme sorte de estar no Departamento de Patologia Experimental do Brompton quando a minha supervisora foi convidada a ir para Harvard, dado que metade da equipa seguiu com ela. Eu não tinha feito planos para ir para os Estados Unidos, mas fui. Foi um privilégio.
 
RFP: Regressa a Portugal no ano seguinte, à Faculdade de Ciências Médicas, mas interrompe a carreira docente para dirigir o Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT).
AR: Sim, e logo eu que tinha dito, à partida, que não iria mudar de área! Mas havia ali um desafio muito importante, que passava pela integração do IHMT na Universidade, pelo que durante três anos praticamente só fiz isso. Veja: o Instituto vinha de um passado recente de per- tença ao Ministério do Ultramar, as pessoas estavam muito desanimadas, sem um rumo definido… Costumo dizer que ajudei a que aquilo que não acabasse. Hoje, felizmente, está integrado na Nova e é uma grande instituição de investigação ligada aos países tropicais. Entretanto, voltei à faculdade e julgo que a partir daí as coisas foram acontecendo naturalmente, até chegar a director.
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RFP: Que tipo de director foi?
AR: Eu sou alguém que arruma as coisas. Ou seja, a minha preocupação não é no sentido da cristalização, mas de chegar aos sítios, encontrar a ordem das coisas, reforçar a organização das instituições e projectá-las para o futuro. É muito isso.
 
RFP: E a investigação, onde é que se encaixou?
AR: Não se pode fazer tudo ao mesmo tempo, não é? A disponibilidade que tinha para dedicar à minha própria investigação foi ficando, infelizmente, cada vez mais curta. Mas ainda mantive a parte do ensino e fui doutorando sempre outras pessoas. Uma coisa que aprendi desde sempre com os meus pais foi que temos de estabelecer prioridades. A pessoa tem é que ser muito boa naquilo que faz, e quando não o é, deve ter a seriedade para dizer a si mesma: não posso ser bom em tudo. Eu acho que a formação científica é uma cultura. Eu adquiri essa cultura quando me doutorei, quando fiz investigação e quando, com 30 anos, submetia projectos, por exemplo aos National Institutes of Health (NIH). Podia ter seguido esse caminho, mas escolhi outro e fi-lo conscientemente, não tenho regrets. Mas a cultura ficou e uso-a muito na parte da gestão, disciplina em que não tenho, feliz ou infelizmente, nenhuma formação.
 
RFP: Essa escolha trá-lo à Universidade Nova de Lisboa. Que avaliação faz destes nove anos como reitor?
AR: Julgo que a Nova está a seguir o seu caminho. Quando olho para os resultados dos últimos dois anos, só posso ficar satisfeito: a Nova ficou em primeiro lugar no concurso nacional de acesso [ao Ensino Superior], é a universidade portuguesa que está mais bem colocada no ranking de Leiden, somos a única que está no QS com menos de 50 anos [ranking que avalia universidades com menos de meio século de existência].
 
RFP: Lá fora não falta reconhecimento.
AR: Sim, sim, a Nova é bastante internacional. Gostava que fosse ainda mais, que tivesse mais alunos do primeiro ciclo, mas isso vai demorar algum tempo. Agora, do ponto de vista do reconhecimento, nós somos das universidades mais internacionais. Mas muitas são, muitas são! Aquelas que são competitivas conseguem fazer isso!
 
RFP: O percurso é desafiante?
AR: O percurso devia ter outro enquadramento. Não gosto nada de dizer que dependemos de um Governo, acho que as pessoas devem ser autónomas. Em França há uma coisa que se chama o Campus France, em Inglaterra há o British Council... Nós, em Portugal, não temos nenhuma organização do género. Estamos a confrontar-nos com parceiros que andam nisto há muito mais tempo e que têm recursos incomparavelmente superiores aos nossos. Agora, o que é muito gratificante é essas universidades nos aceitarem como parceiros. Não como dependentes, mas como pares.
 
RFP: Seria mais fácil crescer se se tivesse avançado com a criação de um consórcio das universidades de Lisboa?
AR: Eu olho para o caso do Norte e vejo ali uma coisa inteligentíssima, que foi a criação da UNorte para a mobilização de recursos, juntando as Universidades do Porto, do Minho e de Trás-os-Montes e Alto Douro. Mas as grandes capitais têm sempre esse drama. Madrid, por exemplo, tem o mesmo problema. E a situação em Lisboa é complexa por uma outra razão, que ultrapassa as universidades: é que nós não temos acesso a fundos estruturais. Estamos fora da zona de convergência. Ora, alguém vai ter que chamar a atenção de quem distribui os fundos que em Lisboa se concentra uma grande parte dos serviços. Isto é como os carros: podemos saber conduzir, mas se não houver gasolina no automóvel vai ser muito difícil chegar aos sítios.
 
RFP: Sente que o actual momento político, com um novo Governo, pode potenciar essas sinergias?
AR: Sou muito ambicioso em relação ao novo ministro. Sou amigo dele, acho que é uma pessoa muito competente, tenho imensas expectativas em relação àquilo que ele possa vir a fazer e julgo que ele está no bom caminho. Acho que, em relação à Ciência e ao Ensino Superior, a situação é muito favorável.

 
RFP: Não ficaram feridas susceptibilidades no processo de fusão da Universidade de Lisboa com a Universidade Técnica?
AR: A Nova tem o seu caminho. Nós estamos no processo de passagem a fundação. Espero, no final deste ano, apresentar ao Governo esse documento. Vamos ser, juntamente com o ISCTE, a única universidade na zona de Lisboa que é fundacional e espero aproveitar isso para que a Nova possa até ser uma boa aliada, se a questão se puser. Agora, se é importante que haja colaboração em Lisboa? Não tenho qualquer dúvida. Disso eu não tenho qualquer dúvida e espero que, mais tarde ou mais cedo, isso possa vir a acontecer.
 
RFP: O seu mandato termina em 2017. Sente que deixa um legado?
AR: Acho que não há legados. Há uma construção. Relaciono sempre a imagem do arado a quem está nestes lugares públicos, porque o arado rasga a terra onde outros, que vêm depois, podem plantar batatas, couves, ervilhas… o que entenderem. O que é muito importante é que haja um rumo. Nesse sentido, penso que ajudei a Universidade Nova a recentrar o seu rumo como instituição internacional, competitiva, diversificada.
Conto-lhe só um pequeno episódio para ilustrar. Uma das coisas em que me empenhei muito foi na construção de um grande laboratório de investigação biomédica, no Campo de Santana. Levou muitos anos a conseguir, foi uma história complexa. Mas quando os jovens investigadores que lá estavam me vieram perguntar se eu ia escrever História, eu disse-lhes: não, quem vai escrever História são vocês, fazendo boa investigação, nos próximos 20 anos. Eu acho que é isso: o legado vai ver-se com o tempo.​

«TEMOS UMA MEDICINA BASEADA NA EMINÊNCIA»

António Rendas tem, sobre a Saúde, a visão «pragmática» de um homem habituado a estar na raiz das coisas: o ensino. À RFP fala sobre a qualidade da formação médica, os desafios da multidisciplinaridade e o papel das farmácias.

 

 
RPF: A formação de médicos em Portugal é tudo aquilo que pode e deve ser?
AR: Eu tenho uma atitude muito pragmática em relação à formação médica: sou um adepto dos conteúdos. A formação médica basal tem de ter muita qualidade, tem que ser dada num ambiente científico, tem que ser muito tutorial, focada no contacto com a pessoa. Deve ser uma formação em que a responsabilidade é partilhada com o aluno desde o primeiro ano. Esse é o meu conceito da formação básica, a chamada graduação. A formação clínica deve ser muito orientada para as especialidades e deve ter muito a ver com a prática.

 
RFP: Sublinhou a importância da prática como método de aprendizagem. Sendo a realidade multidisciplinar, que lugar vê para essa multidisciplinaridade na formação?
AR: A partir do momento em que somos responsáveis pelos cuidados de alguém, qualquer que seja o nosso estatuto profissional – médico, enfermeiro, farmacêutico, técnico, todos devemos estar orientados para trabalhar em conjunto. E isso é como a Ciência: ou se aprende cedo a fazer bem ou depois é mais difícil. A comunicação entre profissionais é uma coisa que obedece a regras de rigor e isso deve ser ensinado nas escolas médicas, e não tenho a certeza de ​que seja. Posso estar a cometer uma injustiça terrível, mas começando na prescrição, passando pela relação entre os profissionais, acho que há aí um caminho que deve ser feito e não me parece que seja com conferências ou tutoriais. Faz-se na prática. Agora, ter professores de Farmacologia e Terapêutica que nunca viram um doente nem prescreveram um remédio é para mim impensável. E acho que isto é muito simples de perceber por qualquer cidadão: eu não gostaria de ser tratado por alguém que me passa uma receita mas nunca viu um doente. É tão simples como isso!
O ensino médico deve ter uma forte componente médica, ou seja, os médicos devem ensinar os jovens a ser médicos. Repare: se tiver um aquário com uns peixinhos grandes, com algas, com conchas, e puser lá uns peixinhos pequeninos, quem vai ensinar os peixinhos peque​ninos a nadar são os peixinhos grandes, não vão ser nem as algas nem as conchas nem a areia. E isso é muito importante numa escola médica.

 
RFP: Mesmo assim, é frequente ouvi-lo elogiar a qualidade dos médicos portugueses.
AR: Quem torna a Medicina portuguesa internacional são os nossos médicos que vão ao estrangeiro e, do ponto de vista institucional, acho que era importante que as organizações médicas e de saúde portuguesas tivessem mais impacto lá fora. Por exemplo, na Organização Mundial da Saúde: acho que a nossa voz é menos ouvida pelas instituições e mais ouvida pelas personalidades, e eu sou adepto do balanço entre uma coisa e outra. Aliás, eu digo sempre, um pouco a brincar, que nós ainda não temos uma Medicina baseada na evidência, temos uma Medicina baseada na eminência – ou nas eminências! Mas isto para dizer que as instituições em Portugal podiam ter um peso maior na formação das pessoas.
 
RFP: A relação entre os vários profissionais da área da saúde – farmacêuticos, médicos, enfermeiros… – é, actualmente, uma relação saudável?
AR: Não conheço o suficiente das relações institucionais. Nos últimos anos tenho tido menos contacto com a Ordem [dos Médicos]. Mas o que vou lendo nos jornais faz-me pensar que há um caminho a percorrer para que as pessoas se possam articular mais no sentido da defesa do doente e não tanto na defesa dos seus interesses. Contudo, julgo que a situação melhorou, porque me lembro que havia relações muito complexas, de subalternidade. Acho que isso mudou e melhorou.

 
RFP: Como é que vê a possibilidade de as farmácias poderem vir a aumentar o leque de serviços que disponibilizam aos utentes?
AR: Mas que serviços?

 
RFP: Relacionados com a adesão à terapêutica, à prevenção de doenças...
AR: Sou um grande adepto do Serviço Nacional de Saúde. O que eu penso é que a Direcção-Geral da Saúde tem um papel muito importante nessa área e acho que tem que haver uma articulação da prestação de serviços de medicina preventiva, e até de medicina curativa, de acordo com o acesso. Porque uma das coisas complexas em Portugal continua a ser, tal como acontece com outras áreas, as pessoas que estão em localizações remotas. Essas poderiam levar a que houvesse partilha de responsabilidades. No entanto, isso teria que ser muito bem acautelado, até na defesa das instituições que tomam essas iniciativas.

 
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