Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
15 outubro 2018
Texto de Carina Machado Texto de Carina Machado Fotografia de Mário Pereira Fotografia de Mário Pereira

Milagre da antecipação

​​Tirou as mamas para evitar o cancro.

Tags
Tamara Milagre era enfermeira no Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, quando o seu caminho se cruzou com o de Sandra. A jovem de 27 anos estava grávida de 29 semanas e havia sido admitida na consulta por suspeita de cancro da mama. Para horror de toda a equipa, os exames confirmaram a doença em estado muito avançado. Sandra foi submetida a uma dupla mastectomia no dia seguinte.
 
Tamara não se cansa de contar esta história da mulher de quem ficou amiga mas a alemã, que se diz pragmática, ainda não consegue evitar que o verde dos olhos se altere quando recorda que foi Sandra, que viria a morrer dois anos depois, quem lhe salvou a vida, sem saber.
 
Tomou conta dela e do bebé por nascer, no recobro. Foi um acaso, trabalhava num piso diferente mas calhou assim. Ficaram amigas e a enfermeira passou a acompanhar Sandra nas consultas, onde depressa se percebeu que o cancro já havia alastrado para os gânglios na axila. A dada altura tornou-se evidente que havia um histórico na família: Sandra tinha tias do lado do pai que morreram precocemente aos 40 anos, com cancro da mama. Foi então chamada a fazer um teste genético que revelou a presença de mutações nos genes BRCA-1. Em condições normais estes genes são reparadores naturais das moléculas do ADN e têm por função impedir o aparecimento de tumores.
 
Mas quando sofrem uma mutação, os BRCA-1 perdem a capacidade protectora, elevando o risco de cancro da mama nos portadores para 50 a 85 por cento e de cancro do ovário para 15 a 45 por cento. Este risco é vitalício e as mutações nos BRCA-1 são hereditárias. «Para mim, foi uma grande novidade o lado paterno estar ligado ao cancro da mama e foi quase em choque que acordei para a minha própria história familiar, e pensei: “Estou feita!”».
 

 Aos 50 anos, Tamara dedica-se a tempo inteiro à associação Evita​
 
Tamara tem 50 anos. É alemã e vive em Portugal há 21. Foi por amor ao belo que veio até cá numa visita de estudo quando resolveu que além de Enfermagem ia tirar Arquitectura, e foi a beleza de Lisboa que a cativou irremediavelmente, desde o primeiro instante. Em troca, a cidade orientou-lhe o caminho até ao amor da sua vida. Casou-se, teve duas filhas. Conseguiu trabalho no Dona Estefânia, onde começou no bloco de partos. Nunca tinha colaborado nessa área mas tudo se aprende, «e assistir ao nascimento do ser humano é das experiências mais maravilhosas que há! Estive lá dez anos e o entusiasmo continuava sempre igual». A sua presença estendeu-se a outros serviços: consultas externas, bloco operatório de ginecologia.  «Havia problemas de pessoal. O habitual!». Assim chegou até Sandra e às portas de um capítulo totalmente diferente da sua própria história. Tamara tinha 41 anos.
 
A doença oncológica não lhe era estranha. A mãe teve um cancro da mama aos 44 anos, episódio que se tomou por isolado por falta de parentes próximos que permitissem traçar o histórico. Do lado do pai sucediam-se os casos de cancro da mama e do ovário entre as tias e a própria avó, uns com mais sucesso do que outros. Tamara sabe que «há muito pouco de cor-de-rosa no cancro».
 
Quando se consciencializou do seu contexto, dirigiu-se de imediato à consulta de genética. A médica, Teresa Kay, ajudou-a a levantar a história familiar e concluiu haver indicação clara para a realização de um teste genético. Tamara fê-lo, mas por descarte. Estava convencida de que estaria tudo bem. O resultado chegaria daí a três meses. «Bingo! Mutação no BRCA-1 e, pela sua forma, herdada do meu pai». Sabia que, por ser familiar em primeiro grau, o facto de a mãe ter tido um cancro da mama aumentava o risco, «mas foi a médica quem mo sublinhou: “O teu risco é altíssimo, acima de 90 por cento”. Por outras palavras, eu ia ter um cancro da mama, só não se sabia quando. Era esperar que acontecesse».
 
Só que, recorde-se, Tamara é pragmática. «Adoro a minha vida e não tinha tempo para o cancro. Decidi tirar as mamas. A mastectomia é uma cirurgia complexa, radical, dolorosa, bastante bruta. No entanto, as mamas para mim eram bombas-relógio que, ainda por cima, não estavam a cumprir qualquer função vital no organismo. Eu estava com 41 anos, já tinha concluído o meu planeamento familiar, pelo que não ia amamentar e, ao contrário do que sei acontecer com muitas mulheres – e compreendo – a minha feminilidade não se define apenas através das mamas».
 

 «Adoro a minha vida e não tinha tempo para o cancro. A minha feminilidade não se define apenas através das mamas»
 
As reacções divergiram. Houve quem se mostrasse totalmente solidário e empático, houve quem a tivesse chamado de maluca e exagerada. «Houve quem me perguntasse: “Por que não cortas a cabeça, se podes ter um tumor cerebral?”. Mas sabendo que um avião tem uma probabilidade de 87 por cento de cair, embarcariam?».
 
Em 2009 avançou com a mastectomia preventiva. «Quando acordei no recobro senti uma enorme dificuldade em respirar, por causa do expansor, e um grande alívio. Pensei: “Conseguiste!”». A recuperação foi complicada. Hoje há mais opções de reconstrução, graças em grande parte à declaração pública da actriz Angelina Jolie, que em 2013 se submeteu a um processo semelhante e impulsionou, com o seu exemplo, um avanço significativo na área. É possível agora, em muitos casos, adormecer e acordar com mamas. Assim como é possível decidir esperar, manter uma vigilância apertada. Mas Tamara não está arrependida: não será para o cancro hereditário da mama que as filhas irão perder a mãe.
 
Sandra poderia estar viva, saudável e o filho teria mãe. O cancro que a matou teria sido evitável. Tamara conta hoje as duas histórias para que haja menos casos como o de Sandra e mais casos como o seu. Criou a Evita, associação de apoio a portadores de alterações nos genes relacionados com o cancro hereditário, porque «quem tem uma sentença sobre a cabeça mas ainda não está doente, não tinha onde recorrer, não encontrava um porto de abrigo». A principal missão da Evita é salvar vidas, identificando portadores. «Garanto que já salvámos muitas».
 

 «A principal missão da Evita é salvar vidas. Garanto que já salvámos muitas»

 

Tamara está agora apostada em mudar o paradigma da investigação oncológica em Portugal e representa o país na GENTURIS, Rede Europeia de Referência para as síndromes genéticas com risco tumoral. «Só posso evitar a doença e o sofrimento se souber primeiro o perigo que corro para poder decidir em conformidade e de modo apoiado». Saber, sublinha, é poder.
 
 

Notícias relacionadas
Galerias relacionadas