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2 agosto 2019
Texto de Maria Jorge Costa Texto de Maria Jorge Costa Fotografia de Luís Silva Campos Fotografia de Luís Silva Campos

«Mesmo com esta idade, preciso de aprender»

​​​​​​​​​​Rui Nabeiro fala sobre a sua empresa e vida familiar.

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REVISTA FARMÁCIA PORTUGUESA (RFP): Sabia que ia ser empresário? 
RUI NABEIRO: Sempre tive uma ambição, mesmo de garoto, garoto… Queria fazer o que via num familiar. Era um homem do campo e dizia para os pais «eu quero outra vida». E procurou-a muito novo. Aos 15, 16 anos já procurava a vida dele fora do país. Tudo isso me levou a pensar que queria ser igual, ou parecido. Sonhava em ser empresário? Não. Que pudesse atingir uma determinada craveira? Também não. As coisas acontecem, mas acontecem a quem tem audácia. Felizmente aconteceu. 

Mas aconteceu porque trabalhou muito para isso. 
Muito, muito. Trabalho por uma questão de princípio. Não precisaria de trabalhar, tenho família. Trabalham também bem e eu podia estar descansado. Mas o tempo custaria mais a passar e eu já cá não estaria. Porque quem se habitua a lutar não aceita a tranquilidade.

Não é homem para parar de trabalhar?
Não! Eu já meti a reforma há muitos anos e ainda não consegui parar até hoje.

Já se reformou há mais de 20 anos, não?
Sim. Já estou com 88, tinha que ter parado há quase 30 anos.

Gosta mesmo daquilo que faz?  
Gosto e tenho gozo naquilo que faço. Dá-me alegria, dá-me satisfação.

Não é um escravo do trabalho? 
Não, e acho que isso não tem lógica nenhuma. Sou uma pessoa que vive para o trabalho, mas ser escravo do trabalho, não. Até dou condições a outros para que eu possa fazer menos. E isso foi também um lema que tive para mim próprio: trabalhar, dar o exemplo, mas dar condições a quem estava próximo de mim para poder fazer o que eu fazia.

Prepara há muito tempo a sua sucessão. A sua forma de liderar é dar autonomia às pessoas? 
Dou autonomia, mas por princípio não entrego. Eu vigio, mas não faço, há muitos anos. E logo bem jovem tinha trabalhos que tinha de dar, mas vigiava. Não mandava, ia ver. A ordem não é um descanso. Distribuímos as tarefas, mas temos de as conhecer. Fui, e sou, partidário de que um empresário na minha idade deve estar atento, mas deixar fazer. Tenho os filhos e os netos. Eles fazem tão bem como eu, mas sempre deito o olho. Discutimos aquilo que cada um possa fazer melhor, ou verificamos que se poderia ter dado um passo para um lado ou para o outro. Por acaso, tenho gente na família com muita preparação académica, diferente de mim, com mais conhecimentos. A minha experiência e como olho para as coisas são duas coisas que se compõem uma à outra.



Fundou a Delta há quase sessenta anos. Como decidiu criar a empresa? 
Os meus pais e um tio tinham uma fabriquetazinha nos anos 50. Eu tinha a ambição de crescer. Sempre corri os mercados, mesmo nessa altura. Comprávamos a matéria-prima em Angola, Cabo Verde (pouco), Timor e pouco mais. Comecei a pensar em fazer a minha própria vida, sem abandonar a que tinha. Decidi criar a empresa em Fevereiro de 1961. O início foi difícil. Pensei em desistir porque não se vendia. Mas, como tinha onde ir buscar um ordenado mínimo para me manter, não desisti. E consegui. Quando comecei, nem a concorrência acreditava. E quando eram alertados por alguém diziam: «Ah! Isso é aquele homem lá do Alentejo, mas eles andam devagar». Eu não andei devagar porque ia aos sítios comprar e vender o café. Quando os outros iam, eu já vinha. E isso é uma grande vantagem. Em 61, vi onde tinha de vender, estudei o mercado de cafés em grão. O mercado Horeca [acrónimo para Hotéis + restaurantes + cafés] estava ocupadíssimo. As pessoas deviam favores aos comerciantes, mas lá foram levando uns quilos do nosso café. Passava de mês a mês por esses sítios todos.

A ligação presencial fez diferença? 
Muita, muita... ainda hoje é útil. Eu já tinha uma forma de estar muito próxima com os espanhóis. Costumo dizer que estamos no Interior profundo e o nosso litoral é a fronteira com Espanha, onde aprendi bastante. O que eu fazia era levar o produto a casa e dar condições de pagamento. O crédito na altura era mais difícil. Fui ganhando um espaçozinho. Os colegas da altura diziam que eu andava devagar. Eu andava era já com a cabeça mais à frente!  

 A aposta em inovação, em tecnologia, em investigação foi intuição?
Sempre fui uma pessoa que não ficou em casa. Há 50 anos o português saía pouco e eu ia para Espanha. Com a Delta, comecei a ir a países, a feiras onde ninguém ou pouca gente ia. Isso deu-me experiência, formas de viver e de estar. Percebi que era este o caminho. Ia a uma feira e trazia matéria-prima e ideias que fizeram de mim uma pessoa com uma audácia e imaginação que não apanhei na escola. Eu com a quarta classe não era mau, e não sou mau, mas havia carências. As viagens deram-me muitas referências, trouxe muitas ideias. 


Rui Nabeiro fundou a Delta em 1961. A empresa é agora pioneira nas cápsulas sem plástico

A Delta Q foi a primeira a fazer cápsulas sem plástico. 
Temos universidades e equipas de investigação que trabalham connosco.  Essa cápsula só nos pode trazer mais força à força. Se não o fizesse, era um erro. Mesmo com esta idade preciso de aprender. Há uns anos tivemos problemas com uma marca nossa em Espanha. Era muito falsificada e todos os dias tínhamos de inventar como impedir a falsificação.  Hoje, com o mundo aberto, tão claro, com tanto sol, há que procurar as pessoas que querem estar connosco.  Tivemos essa oportunidade de imaginação de quem nos desafiou e fomos atrás. É a nossa maneira de estar.

Teve várias ofertas de compra e nunca cedeu. Ser e manter-se português foi determinante? 
Foi determinante, porque eu pensava atingir mais. Diziam: «Diga quanto é». Sei que é um valor incalculável. É uma grande marca, que dá um orgulho, mas um orgulho humilde.

Em 1988 criou o Grupo Nabeiro e começa a diversificação de áreas de negócio. Qual foi a ideia da diversificação? 
A ideia foi a sustentabilidade. Com um só negócio éramos mais frágeis.

Porquê o vinho? 
O vinho foi um capricho meu. Há muito tempo, Campo Maior tinha olival e vinha distribuída por todo o povo. A quem não tinha terras foi distribuído 0,75 hectares para plantar olival e vinha. Todos tinham vinho. Os meus avós também tinham. Com o tempo isso foi desaparecendo. E um dia decidi que tinha de fazer vinho. Em boa hora também, porque começa a ser uma marca e um bom produto.

Estamos no Centro de Ciência do Café. O que esteve na origem deste projecto? 
Tinha um sonho no local onde estamos porque os meus avós maternos viveram aqui numa quintarola de um lavrador. Viveram em condições muito carentes, como viviam as pessoas do campo. Fiquei sempre com vontade de fazer alguma coisa depois de ter comprado o terreno. Tinha a saudade do avô e da avó e assim se criou o museu.


Rui Nabeiro ainda corre todas as "capelinhas" pela manhã, a visitar os funcionários

Preocupa-se com os funcionários, conhece as pessoas. Para si os afectos são importantes? 
É que eu não sou homem de escritório. Trabalhei sempre junto dos meus funcionários. Continuo a levantar-me cedo e a visitar todas as "capelinhas". Conheço os meus colaboradores todos, os daqui e os que estão espalhados pelo país. Dou condições, abro portas, arranjo empregos, dou facilidade e isso é reconhecido. Por exemplo, nos anos 70 e 80 a maioria das pessoas nunca tinha saído de Campo Maior. E eu meti-os num autocarro – em nove autocarros – e fomos para o Sul de Espanha, para o Sul de Portugal. Fomos para a Madeira, os Açores e fomos para Las Palmas, nas Canárias. Eram umas 300 e tal pessoas. Essas pessoas nunca tinham saído de casa. Tive de parar, porque hoje somos muitos.

A proximidade é fundamental para si. 
É. Vem tudo da proximidade. Essas pessoas nunca tinham saído de casa. Tive de parar, porque hoje somos muitos. Mas nessa altura convidávamos a família: se trabalhava a mulher ia o marido, se o marido trabalhava ia a mulher. Era uma semana completa. Era dispendioso, mas chegou e sobrou. Tanto que ainda cá estamos hoje...

Quando se entra em Campo Maior o nome Nabeiro está em todo o lado: a estátua, o nome do Centro ATL. Tem orgulho nisso?  
Olhe, tivemos a felicidade de ter uma indústria que criou emprego. Em Campo Maior quase não há desemprego. Toda a gente tem uma vida razoavelmente boa. É um dos concelhos do país em que se vive melhor. É um trabalho da Delta.

Já recebeu comendas, distinções, prémios, reconhecimentos. Sente vaidade? 
Não. A minha vaidade está aqui. A minha vaidade é a minha empresa. Não volto as costas ao reconhecimento, mas não me traz orgulho, traz-me alguma satisfação.



A que horas é que começa o seu dia? 
O meu dia já começou muito cedo, porque eu levantava-me às quatro da manhã, mas agora estou a levantar-me às seis, seis e um quarto. É o mais tardar que eu me levanto hoje.

E depois dá aquelas suas voltas que disse... 
Dou as minhas voltinhas. Tenho lá o motorista já à minha espera quando eu chego. 

E ao fim do dia... o que é o seu fim do dia agora? 
Agora? Não olho para o relógio, mas era só para ver... A estas horas eu estaria ainda no escritório, tinha trabalho para fazer. Ainda estaria no escritório. Depois, aí pelas seis horas venho aqui à fábrica... seis horas... de maneira que depois faço aqui o que é necessário, conviver com os sectores. Começo a caminhar para casa perto das oito horas, oito e picos. Às oito e meia estamos a jantar. Depois fazemos ali o nosso serão até perto das onze, onze e picos e vamos descansar.

Teve um percurso político na Câmara de Campo Maior. Tem amigos da política, é militante conhecido do Partido Socialista. Como vê o país? 
Não o vejo como gostaria de ver, com certeza. Há muita gente carente, há muitas carências e há muitos maus exemplos. Temos de pensar todos mais nele. Por mim o país seria maravilhoso, em que todos os que não têm tinham de receber, e os que têm algum dinheiro teriam de o distribuir. O doente tem de ser tratado, mas tudo com obrigações. O nosso país já foi muito ruim, é menos ruim, mas não satisfaz muita gente em condições sociais e económicas. Nós não estamos bem, porque para estarmos bem temos todos de estar melhor. Os que estão melhor podem estar satisfeitos, mas quem está pior não pode estar satisfeito, e daí vem o mal-estar.

Por isso é socialista? 
Sou socialista, mais que não fosse pela forma como os meus pais viveram.

Viveu o antes e o depois do 25 de Abril. Há mais oportunidades agora? 
Eu penso que não é terem mais ou menos oportunidades, o que é certo é que a vida, mesmo das pessoas pobres, é menos dura. Sonho com uma sociedade coesa, forte. Se eu tenho mais e não abuso do que tenho, quem tem menos, mas lhe chega para viver, é tão próspero como eu. Agora, se eu tenho e o vizinho não tem nada, disso discordo absolutamente. Eu fui um político local e hoje faço parte aqui da concelhia [do Partido Socialista] por simpatia.


É um homem de família? 
Absolutamente. O meu casamento já tem muitos anos. Se somar o namoro, já são setenta e tantos.

Há muita sabedoria para gerir 70 anos... 
Nunca fiz nada que não estivesse relacionado com a minha mulher. E da parte dela aconteceu sempre um carinho também. Começámos na escola, na instrução primária, a olhar um para o outro. A minha sabedoria é natural, não apanhei na escola mas apanhei no convívio e o convívio na minha casa é muito a sério. Há muita sabedoria de parte a parte. Damos muitos bons exemplos, tanto um ao outro como à própria família. Foi assim que nascemos e é assim que somos. 

Como é ser avô e bisavô? 
Por acaso não queria dizer isso, mas vou dizer... tenho pouco vagar ainda hoje para estar com os netos e os bisnetos. Ser-se bisavô é ainda mais amoroso do que ser avô. Encontro muita piada aos pequenos, temos seis bisnetos:  uma de cinco anos, uma de quatro, uma de dois e outra que ainda há-de fazer dois. Está tudo ali… É uma simpatia... é uma alegria que vem sempre, um sorriso nos olhos, um sorriso na cara e em todo o lado.

Tem amigos chegados? Amigos, aqueles amigos de vida? O senhor Rui tem convívio com amigos, gosta de estar com os amigos, ou gostava, antes? 
Gosto muito disso que está a dizer. Mas é que preciso também de descansar um bocado, porque se não fizer por descansar... Mas, tenho. Quando vou para a praia tenho muitos convívios, mesmo de clientes. Além de uns que conheço e pessoas que me tratam muito bem, o nosso cliente absorve-nos. O nosso amigo verdadeiro, que está aqui no meio disto tudo. A vida de quem tem umas largas dezenas de milhar de clientes quando aparece um problema aqui outro acolá, é marchar atrás do cliente e ao sítio onde ele estiver para poder sanar qualquer situação de mal-estar ou mal-entendido com o vendedor. 

Sempre gostou de viajar...  
Muito.

O que é que gostou mais?  
Trabalhei muito com a Alemanha e gostei muito. Todos os países da Europa, onde em qualquer lugar havia um português.  Os serviços sociais ou a igreja dessas zonas convidavam-me sempre para festas. Ia com gosto porque ali ganhava sempre mais uns amigos, um cliente ou dois. A vida é vivida à procura dos clientes. 

Como quer ser recordado?  
Explicar isso não sei. Mas vou ser recordado pelo que fiz de bem às pessoas. Chega-me. Tenho consciência de que não pensei em mim sem pensar nos outros.

É um homem feliz? 
Sou, sim. Não me falta nada. Tenho saúde, tivemos este azar há pouco tempo com o genro [o toureiro Joaquim Bastinhas, falecido em Dezembro de 2018] e temos azares como toda a gente. Mas tenho felicidade porque vivo e deixam-me viver. E eu ajudo a viver também.​​


Delta é Abem



A Delta Cafés produziu cinco milhões de saquetas de açúcar numa campanha de divulgação do Programa Abem: Rede Solidária do Medicamento. «Fizemos o que a nossa consciência nos disse», justifica Rui Nabeiro, elogiando o projecto da Associação Dignitude. 

A responsabilidade social é um assunto sério no Grupo Nabeiro. O senhor Rui Nabeiro, como insiste ser chamado, não esquece as origens e assume a missão de ajudar quem precisa. Não só em Campo Maior, como em todo o país. «O que aparece é estudado» e, se for o caso, a máquina organiza-se para ajudar.  O empresário dá outro exemplo: «Ainda hoje, numa acção lá em baixo no Algarve, distribuímos frigoríficos a pessoas que foram atingidas nos incêndios do ano passado». 

Rui Nabeiro tem algumas certezas. Uma delas é: «Quem lançou a semente à terra tem sempre algo para colher. A nossa empresa tem mais vida e tem mais saúde sabendo distribuir. Pensando só em nós, possivelmente não teria a saúde que tem. Isso é uma leitura que eu faço mesmo quando estou quase a dormir. Isso consigo passá-lo também a todos os meus e aos meus funcionários».​​
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