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29 julho 2017
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Alexandre Vaz e Jorge Firmino Fotografia de Alexandre Vaz e Jorge Firmino

Linha da frente

​​​​​​​​​Durante os incêndios de Pedrógão as farmácias atenderam centenas de pessoas sem nada, só com a roupa do corpo.​

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Sábado, 17 de Junho, Avelar, concelho de Ansião. O inferno já começou, mas Margarida Diogo não sabe. Sai da Farmácia Medeiros por volta das sete da tarde. Ainda tem tempo de passar por casa. Faltam 15 minutos para as 20 horas quando chega ao jantar de veteranos no Atlético Clube Avelarense. Num terreno perto do clube, vê cerca de 50 pessoas juntas.

Ao longe, parece uma excursão. Quando lá chega, percebe que uma rapariga chora. Há algo de errado. «Quando me aproximei, o cenário era assustador. Havia pessoas sem sapatos, tinham deixado tudo para trás». Decide falar-lhes para prestar auxílio. «Estavam em pânico. Vinham de Pedrógão Grande, fugiram do fogo. Perguntei se precisavam de comida, de água».

A técnica de farmácia decide pedir ajuda ao presidente da associação de veteranos. «Começámos a receber pessoas, a dar-lhes de beber e de comer. Estiveram lá praticamente toda a noite». Margarida fica de serviço nocturno na farmácia – e vai dando apoio no Atlético.

Os desalojados – «refugiados», como lhes chamam – continuam a chegar, sempre mais. Ninguém tem ainda ideia da dimensão da tragédia em curso. «Encontrei um utente nosso sem sapatos. O filho tirou-o à força, com a esposa». De Lisboa e do Porto, começam a chegar pessoas à procura dos familiares.

Ninguém pode passar para Figueiró dos Vinhos, a estrada está cortada. «Apareceu um pai jovem, não sabia da filha. A mãe tinha-a entregado a outro casal. Foi desesperante. Mas ninguém imaginava que ia haver mortos».

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Carlos Pereira, da Farmácia Baeta Rebelo, passou a manhã em reuniões com as autoridades

O rosto de Margarida ainda mostra a dor e o desespero vividos naquele dia de terror. E nos seguintes.

Do hospital de Avelar chegam à farmácia muitos pedidos urgentes. «Eram necessários antibióticos, havia pessoas com problemas respiratórios». Ligou para lá a perguntar pela filha do jovem pai. Tinham uma criança refugiada, mas não era a mesma. «Estava perdida no hospital, sem família».

A rua começa a parecer «um filme de terror». Cinzas, fumo, folhas de eucalipto queimadas, calor, demasiado calor, sufocante.

No mesmo dia, em Pedrógão Grande, horas antes, Dina Dias, técnica auxiliar de farmácia, está prestes a entrar ao serviço na Farmácia Baeta Rebelo. Recebe um telefonema do marido, que é bombeiro. Quer saber se a sirene está a tocar. «Ele estava a ver o incêndio. Olhei e estava brutal, o fumo». A sirene começou a tocar. Depois, as coisas complicaram-se. «O fogo veio para muito perto da vila. Aqui atrás, na avenida, havia muitas pessoas cheias de medo. As chamas eram enormes».

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Às seis da tarde, o centro de saúde fecha. À farmácia começam a chegar as primeiras pessoas. Vêm em pânico e ansiosas, é necessário medir-lhes a tensão. Chega também a médica, sem autorização para abrir o centro de saúde. Dá assistência na farmácia.

Pelas 21 horas, Dina sai. O centro de saúde é reaberto até as equipas do INEM chegarem com um hospital de campanha. No centro de saúde, só estão a médica e duas enfermeiras. A técnica auxiliar de farmácia fica ao pé delas. Fazem equipa. «Eles têm pouco material. Vim buscar injectáveis, coisas para dores, para queimaduras, soro». Entregou também muitos materiais desses aos bombeiros.

Durante a madrugada, à Farmácia Baeta Rebelo, ainda de serviço, «chegam muitos queimados, pessoas com problemas oftálmicos». A partir das sete da manhã, «é o caos». As comunicações falham, não há telefone. O stock falha também. «Tivemos ruptura de máscaras e de Biafine».

A Santa Casa da Misericórdia começa a receber deslocados. Perderam tudo, precisam de tudo. No domingo de manhã, há uma calma estranha na farmácia. Começam a chegar as pessoas do centro de saúde.

Fátima Lourenço, administrativa da Baeta Rebelo, passou a noite de sábado a proteger a própria casa, num lugar isolado perto de Pedrógão. Fê-lo sozinha. O marido, coma dante-adjunto da corporação de bombeiros, andou dias seguidos no terreno a combater as chamas. «Não dormi a regar as coisas. Eram tantas fagulhas a cair! O terraço ficou todo preto. E eu tenho dois cães». A filha, bombeira também, telefonou-lhe aflita: «Traz os cães e não te esqueças dos peixinhos». A rapariga, de 18 anos, acabou por sofrer alucinações, devido à falta de sono e aos relatos brutais das vítimas. Recebeu acompanhamento psicológico. Naquela altura, Fátima Lourenço ainda não podia imaginar o sofrimento da filha. Ao chegar à vila, começa a tratar das refeições, até chegarem mantimentos.

Em Castanheira de Pera, o terror está por todo o lado. Maria Cândida Cruz, directora-técnica da Farmácia Dinis Carvalho, vai para casa, em Coimbra, pela EN236. Poucas horas depois vão morrer ali, carbonizadas, 47 das 64 pessoas vítimas daquele que, sabe-se agora, foi o pior incêndio de sempre em Portugal. Quando ela passa, aquela ainda não é a estrada da morte.

José Lourenço, técnico de farmácia e presidente da Junta de Freguesia, fica sem comunicações. As pessoas começam a chegar à Dinis Carvalho. Precisam de más- caras, soro fisiológico, gotas oftálmicas. A farmácia ficou aberta até altas horas da madrugada.

Chegam muitos estrangeiros das serras. No domingo, as entradas e saídas estão fechadas. José Lourenço não pára até segunda-feira de manhã. Faltam medicamentos, material de primeiros socorros. Não há telefone. Há muitos desalojados. Há quem tente sair da vila.

Muitos vieram para a Praia das Rocas, à entrada de Castanheira de Pera, para tentar refrescar-se num dia estranhamente quente para a época. É o caso de Mariana Nascimento, de 27 anos, farmacêutica da Farmácia Medeiros, de Avelar. Veio com o namorado passar o fim-de-semana, veranear e divertir-se. «Estava a correr tudo impecavelmente».

Por volta das seis da tarde de sábado, o casal começa a ver fumo a aproximar-se. «A minha sorte foi ter alugado casa e querer passar lá a noite. Se não, ter-me-ia vindo embora». Poderia ter sido mais uma vítima da EN236. «E pensar nas pessoas ao nosso lado».

A casa alugada ficava num pinhal. Ainda lá foram, para tomar um banho depois da praia. Saíram para jantar no centro da vila. Em Castanheira de Pera, o drama crescia. «Carros com quatro piscas ligados, muito fumo».​

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Pinheiros e eucaliptos amontoados, sub-bosque denso, sem aceiros. Um barril de pólvora.

No restaurante, uma mesa grande ficou vazia. Estava marcada para uma jantarada de bombeiros. «Havia pessoas a dizer que na Moita tinha ardido tudo. Na fábrica do senhor Mendonça, já havia mortos».

Ficar na casa alugada no meio do pinhal deixou de ser um sonho, ou sequer uma hipótese. «Naquela casa, não íamos ficar». Ainda fizeram um pouco de companhia ao dono, um holandês solitário. «Ao fim de uma hora, decidimos ir embora». Pernoitaram na Praia das Rocas, com outras pessoas de fora. «Víamos o fogo à volta». Receberam aí a notícia da morte de 19 pessoas na estrada.

«Emprestámos os telemóveis aos visitantes, para contactarem os seus familiares». Habitante ou turista, qualquer um poderia ser mais uma vítima.

Só no domingo conseguem sair dali. «Perguntámos à Protecção Civil por onde podíamos passar». Pela Lousã, ao nascer do dia. «Estava tudo a arder em volta. Quando viemos, tive medo». Na Estrada Nacional 236, o cenário é desolador. Ambos os lados da estrada são cemitérios de árvores. Eucaliptos, estreitos e altos, queimados. Negro. Um silêncio total na floresta. Ausência de vida. O dia a seguir.

Na estrada para a aldeia de Nodeirinho, onde morreram 11 dos 30 habitantes, ainda há carros carbonizados. Um rapaz jovem sai de casa, com o rosto escondido nas mãos. A dor é demasiada. Uma vizinha abraça-o, durante muito tempo.

Figueiró dos Vinhos está em estado de sítio. Há bombeiros e muita comunicação social. Naquele sábado, na Farmácia Manuel Gameiro, era Luís Paiva quem estava de serviço. Os alertas começaram pelas 15h. «Via-se o fumo». O domingo é atribulado. Chegam utentes com problemas oculares, respiratórios, sem medicação. Ao cair da noite, Luís já tem consciência da dimensão da tragédia. Invoca-se o nome das vítimas. Utentes da farmácia, amigos.

«Conhecia muitas pessoas que perderam a vida». Há pessoas em choque, a precisar de conforto. Ele tenta dá-lo.

A casa de Luís, numa aldeia próxima, sobreviveu por pouco. Ficou rodeada pelas chamas. «A partir de domingo ardeu tudo em volta».

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Catarina, da Farmácia Medeiros, em Avelar, passa os dias a separar roupa e a ajudar no que for necessário no Atlético Clube Avelarense.

O seu colega, Nuno Silva, de 33 anos, também vive perto, em Chãos de Baixo. O fogo chegou à porta da sua casa. «Foi esticar as mangueiras, pôr água nos bidões. Só ficou a casa e algumas culturas… o fogo era uma força destruidora, labaredas enormes. A cem metros, já não se podia estar… Vento muito forte. O dia transformou-se em noite».

No mesmo dia, em Avelar, chegam revoadas de utentes à Farmácia Medeiros. Precisam de ser avaliados, de medicamentos, de quem os ouça. Há um casal de holandeses com um bebé de sete meses. Pedem um biberão, leite, fraldas, mas não têm nada para além da roupa do corpo. A farmacêutica, Margarida Diogo, resolve o problema.

Aparece um senhor com um cão. «O cão estava a ter um ataque de pânico. Parecia um ser humano a pedir para respirar». A farmácia estava cheia de gente, que abriu alas para deixar passar o animal à frente. «O dono nem falava. Estava chamuscado. O cão viu aquilo tudo. Demos-lhe um relaxante fraquinho para o acalmar e água». Entra um operário com problemas de tensão e em pleno ataque de pânico. «Os colegas da serração tinham morrido todos, carbonizados». Também o deixam passar à frente.

À noite, em Pedrógão Grande, Dina Dias não há-de largar a farmácia sem sofrer um desgosto. «Consegui sair às nove, dez horas». Foi quando se espalhou a notícia da morte de Bianca, de quatro anos, carbonizada no carro com a avó. «Costumava vir brincar para a farmácia».

Na segunda-feira, cheira a lareira em Figueiró dos Vinhos. Há fumo e o calor ainda é insuportável. Uma mulher de uma aldeia isolada irrompe aflita na Farmácia Vidigal: «A minha filha esteve a combater o fogo e está com problemas respiratórios».

A directora-técnica, Adelaide Reis, entra a chorar. Passou a manhã a tentar saber dos seus utentes e acabou de descobrir mais uma família desaparecida. «Quem tentou sair, ficou». Há muitas aldeias sem nome, explica ela. São aglomerados de casas. E ainda não se sabe o que aconteceu. A perda já é imensa.

Ela está a entregar materiais aos bombeiros. Tem mais uma entrega. Sucedem-se as reuniões com as autoridades locais para perceber o que fazer daqui em diante. Tem de sair novamente, para o pavilhão onde estão os desalojados. Vai procurar utentes, ajudar no necessário, consolar como puder.

Em Pedrógão, terça-feira, tenta-se dar apoio a quem precisa. O fogo ainda está próximo, cheira a fumo e vê-se as labaredas. «Todas as pessoas perderam alguém, estão em pânico. Já são muitos dias. Emocionamo-nos… Eu tento dizer alguma coisa, mas já não sou capaz», desabafa Dina. Carlos Pereira, director-técnico da Farmácia Baeta Rebelo, esteve reunido com a Protecção Civil na Câmara Municipal. Continuam a chegar pessoas com queimaduras, problemas respiratórios e oculares. «Como há muita gente no centro de saúde, em primeiro lugar vêm à farmácia. Não têm medicamentos nem receita. Há pessoas sem nada, sem dinheiro. Os desalojados estão na Santa Casa. Ontem, houve requisições de 20 ou 30 caixas de medicamentos».

De farmácias de outros pontos do país chegam ofertas de ajuda. As empresas de distribuição também apoiam. «Há muita solidariedade. Tenho falado com as instituições a perceber as necessidades. Servimos de interligação». E diz: «Há vontade de fazer coisas».

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Maria Clara Pacheco Pereira e Cátia Marques, da Farmácia Campos, na Aguda. A freguesia esteve cercada pelas chamas.

Em Castanheira de Pera, o mesmo cenário. «Cada pessoa entra a contar a sua história. Estamos a fornecer os medicamentos sem receita, continuamos sem sistema», diz a directora-técnica na quarta-feira. «Conhecemos os que morreram». A farmácia garantiu a muitos sobreviventes que ficaram sem casa insulinas e outros medicamentos indispensáveis. Apoiou os bombeiros. Ainda está a fazer «o levantamento das necessidades».

Em Avelar, a mesma atitude: «Tentamos ajudar ao máximo. Disponibilizámos um fundo aos bombeiros para virem buscar o que precisassem». Carolina Marques, neta da doutora Alice, a directora-técnica, passa os dias nas instalações do Atlético Clube Avelarense. Separa roupas, carrega sacos. «Ainda vai demorar algum tempo. Só daqui a um mês saberemos o que faz falta».

A pequena freguesia de Aguda também esteve cercada pelas chamas. Na quarta-feira, não há vivalma nas ruas. Foi a primeira noite em que se dormiu.

Cátia Marques, da Farmácia Campos, conta que houve pessoas evacuadas em Casal do Pedro, Ribeira de Alge, Fato, Fragas de São Simão. «Foi o pânico. Na segunda, não houve luz nem água. Ninguém dormia aqui. Tinham medo de que o incêndio viesse. Hoje é o dia mais calmo».

Os bombeiros vão passando. Pedem pomadas, joalheiras, soros, pastilhas para a garganta. Na estrada de acesso, está tudo queimado. A proprietária, Maria Clara Pacheco Pereira, acabou de passar por lá. «É hora de cuidar dos vivos», declara. «Arregaçar as mangas e ajudar», como pede Carlos Pereira, o director-técnico da farmácia Baeta Rebelo, de Pedrógão Grande. Esta é só a primeira quarta-feira, depois daquele terrível sábado, 17 de Junho.
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