Contornamos o monte. Imensidão de verde. No topo, o Museu do Côa: cimento pintado de xisto para não sobressaltar a vista à distância. O museu como testemunha e memória de tempos distantes, na região que os primeiros homens escolheram para se expressar; herança eterna para a Humanidade.
Raquel André, a directora-técnica da Farmácia Moderna, em Vila Nova de Foz Côa, guia-nos os passos na descoberta do Homem antigo que ainda existe em nós. Nada é ao acaso, aprendemos à medida que percorremos as altas salas do edifício que enfrenta agora graves problemas financeiros: traços seguidos, repetidos em réplicas do passado, e vemos, sobrepostos, cavalos, bovinos, veados, cabras, homens, mulheres. A quotidianidade do Paleolítico em diante.
Para ver as gravuras reais, em Castelo Melhor ou na Muxagata, é preciso reservar com muita antecedência. É o que os turistas mais procuram por estas terras, berço de algumas das melhores vinhas do país. E o turismo aumenta, temos prova: abrandamos o carro, procuramos indicações, mete-se-nos ao caminho uma mulher da terra, porte orgulhoso, idade muito avançada, de tirada imediata: «Querem que fale em inglês? Também sei!».
Seguimos a estrada: esquerda, direita, esquerda. Vemos os rios Côa, Douro, Sabor. Altos montes, extensas vinhas. Há várias indicações de percursos pedestres.
No caminho, Raquel André conta-nos que nasceu em Moçambique, viveu em Lisboa e só mais tarde, já casada e com a primeira das duas filhas, se mudou. «Quando cheguei, Vila Nova de Foz Côa era mais pequena e a estrada estreita e sinuosa. Mas adaptei-me facilmente. Das primeiras coisas que vi foi a creche para a minha filha. Gostei muito das condições e isso tranquilizou-me». Agora, é proprietária das duas farmácias da cidade, onde todos a conhecem e cumprimentam amavelmente, e de uma outra em Freixo Numão.
Na praça principal de Vila Nova de Foz Côa, a do Município, encontramos referências à história da região: a Igreja Matriz, mandada construir por D. Manuel I, em invocação a Nossa Senhora do Pranto; um dos oito pelourinhos existentes, símbolo ancestral da vida comunitária; a estátua de D. Dinis, de quem a cidade recebeu o primeiro foral, a 21 de Maio de 1299.
Avançamos pelo chamado “caminho da costa”, descendo sempre até à capela de Nossa Senhora da Veiga, a 2,5 quilómetros do Pocinho. Este é um lugar de oração e peregrinação. Todos os anos, os foz-coenses vão a pé buscar a estátua da santa e levam-na para a cidade, dando início a uma semana de devoção à sua padroeira, com as ruas cheias de flores, as mais belas colchas nas janelas das casas e uma procissão a rigor. A tradição, em Agosto, tem mais de 200 anos, mas, por causa da guerra colonial, durante o Estado Novo os devotos decidiram redobrar preces, repetindo a festa no mês de Março, para que a santa protegesse os filhos da terra que iam combater em África.
Metros depois encontramos o moderno e premiado Centro de Alto Rendimento de Remo do Pocinho. Espécie de serpente branca no meio do Vale do Douro, tornado realidade pelo arquitecto Álvaro Fernandes Andrade e dividido em três partes: zona social, alojamentos e zona de treino, numa área de 8.000m2.
Visitamos, de seguida, o cais fluvial, sítio privilegiado para a prática daquela modalidade desportiva. Atracado, o “Senhora da Veiga” descansa de mais um passeio, habituado já às curvas e contracurvas dos rios que nesta região se encontram. É nesta embarcação de madeira, réplica dos tradicionais barcos “rabelos” que transportavam as pipas de Vinho do Porto do Alto Douro até às caves em Vila Nova de Gaia, que dezenas de turistas descobrem as altas paisagens da região. Outros cruzam-nos a vista em cruzeiros. Outros, ainda, aproveitam a linha férrea que percorre
montes e pontes.
Todos perseguem o Douro, prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza (…). Um poema geológico. A beleza absoluta.
Assim o disse Miguel Torga, poeta apaixonado por estes caminhos.
Paramos a contemplar a paisagem, que ecoa o poeta.
Corre, caudal sagrado,
Na dura gratidão dos homens e dos montes!
Vem de longe e vai longe a tua inquietação...
Corre, magoado,
De cachão em cachão,
A refractar olímpicos socalcos
De doçura
Quente.
E deixa na paisagem calcinada
A imagem desenhada
Dum verso de Frescura
Penitente.
Seguimos rumo à casa senhorial do Visconde de Almendra. Perguntamos a sua história às mulheres ocupadas das rendas, sentadas em banquinhos ao fresco do final da tarde. «A última moradora foi a D. Márcia, que morreu há uns 15 anos. Agora está para ali, à espera que a família se decida sobre que futuro lhe dar».
Prosseguimos, a conta-gotas. Temos paragem obrigatória em vários miradouros, sempre impressionantes: o da Costa, o da Mata dos Carrascos (Santo Amaro), o de São Gabriel (Castelo Melhor), o de Nossa Senhora do Viso (Custóias), o de Santa Bárbara (Mós), o de São Martinho (Seixas) e o de Arnozelo (Numão).
Mas não é apenas de paisagem que se compõe a região. No Poio vê-se as pedreiras de xisto e sabe-se um pouco mais sobre a árdua vida dos trabalhadores de outrora. Um contraste com a vida actual da população idosa, frequentadora da Universidade Sénior e da Escolinha de Artes de Vila Nova de Foz Côa. Para os jovens, as ofertas são mais limitadas: «Há o cinema e, à noite, dois bares, o Jó e o Cohiba», diz Raquel André, comentando que «aqui não há a oferta de trabalho que se gostaria e, por isso, a maioria é obrigada a sair».
Saem os da terra, chegam os curiosos, os amantes da natureza e também os apreciadores de vinho, que encontram nestas paisagens os mais aromáticos sabores, com origem em algumas das mais famosas casas, como a Quinta do Vale Meão e a Quinta de Ervamoira. Mas há muitas mais. É comum ver as vinhas, plantadas em linhas rigorosas a subir os montes, à medida que seguimos viagem. «Em Almendra há muitas quintas conhecidas. Dizem que Isabel dos Santos [filha do presidente de Angola] andava interessada em comprar alguma», conta-nos Raquel André, em jeito de confidência.
Já para os amantes de História, é imperdível o circuito arqueológico de Freixo Numão, que remonta aos tempos medievais e românicos: Castelo Velho, Prazo e Rumansil. É preciso conhecer os meandros ou aproveitar as indicações dadas pelos agricultores que por ali andam, de tractor, a vigiar as terras floridas, de poucas sombras e calor abrasador, um frio agreste em tempos de Inverno.
É pela memória do Homem que a região é mais conhecida: as gravuras rupestres que travaram a construção da barragem na década de 1990. E a rima dos estudantes da escola secundária de Foz Côa, inspirada pela canção dos Black Company, em voga na altura, ainda é repetida, com sorriso, nos dias que correm: «As gravuras não sabem nadar!» O passado versus o presente. O passado e o presente.