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28 março 2017
Texto de Rita Leça Texto de Rita Leça Fotografia de João Pedro Marnoto Fotografia de João Pedro Marnoto

Foz Côa, o lugar onde o homem quis ser lembrado

​​​​​A região exibe com orgulho a marca do Homem do Paleolítico, que escolheu estas terras para viver e em cujas pedras gravou filmes de uma vida distante.​
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Contornamos o monte. Imensidão de verde. No topo, o Museu do Côa: cimento pintado de xisto para não sobressaltar a vista à distância. O museu como testemunha e memória de tempos distantes, na região que os primeiros homens escolheram para se expressar; herança eterna para a Humanidade. 

Raquel André, a directora-técnica da Farmácia Moderna, em Vila Nova de Foz Côa, guia-nos os passos na descoberta do Homem antigo que ainda existe em nós. Nada é ao acaso, aprendemos à medida que percorremos as altas salas do edifício que enfrenta agora graves problemas financeiros: traços seguidos, repetidos em réplicas do passado, e vemos, sobrepostos, cavalos, bovinos, veados, cabras, homens, mulheres. A quotidianidade do Paleolítico em diante.

Para ver as gravuras reais, em Castelo Melhor ou na Muxagata, é preciso reservar com muita antecedência. É o que os turistas mais procuram por estas terras, berço de algumas das melhores vinhas do país. E o turismo aumenta, temos prova: abrandamos o carro, procuramos indicações, mete-se-nos ao caminho uma mulher da terra, porte orgulhoso, idade muito avançada, de tirada imediata: «Querem que fale em inglês? Também sei!».

Seguimos a estrada: esquerda, direita, esquerda. Vemos os rios Côa, Douro, Sabor. Altos montes, extensas vinhas. Há várias indicações de percursos pedestres.

No caminho, Raquel André conta-nos que nasceu em Moçambique, viveu em Lisboa e só mais tarde, já casada e com a primeira das duas filhas, se mudou. «Quando cheguei, Vila Nova de Foz Côa era mais pequena e a estrada estreita e sinuosa. Mas adaptei-me facilmente. Das primeiras coisas que vi foi a creche para a minha filha. Gostei muito das condições e isso tranquilizou-me». Agora, é proprietária das duas farmácias da cidade, onde todos a conhecem e cumprimentam amavelmente, e de uma outra em Freixo Numão.

fozcoa_texto.jpg 

Na praça principal de Vila Nova de Foz Côa, a do Município, encontramos referências à história da região: a Igreja Matriz, mandada construir por D. Manuel I, em invocação a Nossa Senhora do Pranto; um dos oito pelourinhos existentes, símbolo ancestral da vida comunitária; a estátua de D. Dinis, de quem a cidade recebeu o primeiro foral, a 21 de Maio de 1299.

Avançamos pelo chamado “caminho da costa”, descendo sempre até à capela de Nossa Senhora da Veiga, a 2,5 quilómetros do Pocinho. Este é um lugar de oração e peregrinação. Todos os anos, os foz-coenses vão a pé buscar a estátua da santa e levam-na para a cidade, dando início a uma semana de devoção à sua padroeira, com as ruas cheias de flores, as mais belas colchas nas janelas das casas e uma procissão a rigor. A tradição, em Agosto, tem mais de 200 anos, mas, por causa da guerra colonial, durante o Estado Novo os devotos decidiram redobrar preces, repetindo a festa no mês de Março, para que a santa protegesse os filhos da terra que iam combater em África.

Metros depois encontramos o moderno e premiado Centro de Alto Rendimento de Remo do Pocinho. Espécie de serpente branca no meio do Vale do Douro, tornado realidade pelo arquitecto Álvaro Fernandes Andrade e dividido em três partes: zona social, alojamentos e zona de treino, numa área de 8.000m2.

Visitamos, de seguida, o cais fluvial, sítio privilegiado para a prática daquela modalidade desportiva. Atracado, o “Senhora da Veiga” descansa de mais um passeio, habituado já às curvas e contracurvas dos rios que nesta região se encontram. É nesta embarcação de madeira, réplica dos tradicionais barcos “rabelos” que transportavam as pipas de V​inho do Porto do Alto Douro até às caves em Vila Nova de Gaia, que dezenas de turistas descobrem as altas paisagens da região. Outros cruzam-nos a vista em cruzeiros. Outros, ainda, aproveitam a linha férrea que percorre
montes e pontes.

Todos perseguem o Douro, prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza (…). Um poema geológico. A beleza absoluta.

Assim o disse Miguel Torga, poeta apaixonado por estes caminhos.

Paramos a contemplar a paisagem, que ecoa o poeta.

Corre, caudal sagrado,
Na dura gratidão dos homens e dos montes!
Vem de longe e vai longe a tua inquietação...
Corre, magoado,
De cachão em cachão,
A refractar olímpicos socalcos
De doçura
Quente.
E deixa na paisagem calcinada
A imagem desenhada
Dum verso de Frescura
Penitente.

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Seguimos rumo à casa senhorial do Visconde de Almendra. Perguntamos a sua história às mulheres ocupadas das rendas, sentadas em banquinhos ao fresco do final da tarde. «A última moradora foi a D. Márcia, que morreu há uns 15 anos. Agora está para ali, à espera que a família se decida sobre que futuro lhe dar».

Prosseguimos, a conta-gotas. Temos paragem obrigatória em vários miradouros, sempre impressionantes: o da Costa, o da Mata dos Carrascos (Santo Amaro), o de São Gabriel (Castelo Melhor), o de Nossa Senhora do Viso (Custóias), o de Santa Bárbara (Mós), o de São Martinho (Seixas) e o de Arnozelo (Numão).

Mas não é apenas de paisagem que se compõe a região. No Poio vê-se as pedreiras de xisto e sabe-se um pouco mais sobre a árdua vida dos trabalhadores de outrora. Um contraste com a vida actual da população idosa, frequentadora da Universidade Sénior e da Escolinha de Artes de Vila Nova de Foz Côa. Para os jovens, as ofertas são mais limitadas: «Há o cinema e, à noite, dois bares, o Jó e o Cohiba», diz Raquel André, comentando que «aqui não há a oferta de trabalho que se gostaria e, por isso, a maioria é obrigada a sair».

Saem os da terra, chegam os curiosos, os amantes da natureza e também os apreciadores de vinho, que encontram nestas paisagens os mais aromáticos sabores, com origem em algumas das mais famosas casas, como a Quinta do Vale Meão e a Quinta de Ervamoira. Mas há muitas mais. É comum ver as vinhas, plantadas em linhas rigorosas a subir os montes, à medida que seguimos viagem. «Em Almendra há muitas quintas conhecidas. Dizem que Isabel dos Santos [filha do presidente de Angola] andava interessada em comprar alguma», conta-nos Raquel André, em jeito de confidência.

Já para os amantes de História, é imperdível o circuito arqueológico de Freixo Numão, que remonta aos tempos medievais e românicos: Castelo Velho, Prazo e Rumansil. É preciso conhecer os meandros ou aproveitar as indicações dadas pelos agricultores que por ali andam, de tractor, a vigiar as terras floridas, de poucas sombras e calor abrasador, um frio agreste em tempos de Inverno.

É pela memória do Homem que a região é mais conhecida: as gravuras rupestres que travaram a construção da barragem na década de 1990. E a rima dos estudantes da escola secundária de Foz Côa, inspirada pela canção dos Black Company, em voga na altura, ainda é repetida, com sorriso, nos dias que correm: «As gravuras não sabem nadar!» O passado versus o presente. O passado e o presente.​

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