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10 setembro 2018
Texto de Sónia Balasteiro Texto de Sónia Balasteiro Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Ela ri-se na cara do cancro

​​​​​Marine teve um linfoma em criança mas conseguiu superá-lo.

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Há momentos que nos definem. Pela forma como fazemos frente ao medo. Com Marine Antunes, aconteceu aos 13 anos. Era a primeira noite sem os pais, internada num quarto de mulheres adultas do hospital de Coimbra, apesar da sua tenra idade. Sentiu-se assustada, num ambiente hostil, e ligou para casa a chorar. Pediu para irem buscá-la. 
 
Mas os pais não podiam fazê-lo e choraram com ela. Poucos dias antes, no hospital de Leiria os médicos tinham finalmente descoberto o motivo das febres, das dores, por que emagrecera tanto no último ano.
 
Sempre fora uma criança saudável, a mais nova de três irmãs, crescera a brincar na rua, no mato. Fazia karaté e era feliz. Tinha uma banda com as irmãs. Eram «péssimas mas muito divertidas», como ela as descreve. Os primeiros 12 anos da vida passaram-se assim, com «muito baile de Verão à mistura». Até Marine começar a ficar frágil. Procuraram o motivo durante um ano.


 
Estava ela com sono e fome depois de horas no hospital devido a uma dor no peito particularmente insidiosa quando chegou a notícia. A menina tinha uma mancha no mediastino, uma das três cavidades da caixa torácica. O tamanho impunha respeito: cinco centímetros, demasiado para o seu corpo pequeno e magro. O internamento não melhorou as coisas.
 
Passados apenas cinco dias a mancha tinha aumentado seis centímetros, chegando aos 11. Estava a um milagroso milímetro do coração.
 
Hoje, Marine, alegre rapariga de 28 anos e dona de um daqueles sorrisos puros que enchem de esperança o mundo, diz ter tido muita sorte. «Foi uma questão de dias, horas».
 
Não tardou a ser transferida de Leiria para Coimbra, para iniciar os tratamentos de quimio e radioterapia.
 
Antes, teve tempo de cruzar-se com um dos seres mais especiais da sua vida, outra menina. Chamava-se Ana Luísa e, como ela, tinha cancro, a palavra proibida. No caso de Marine, chamava-se linfoma.
 
Ana Luísa era um ano mais velha e logo se tornou melhor amiga. «Ela explicou-me tudo. Disse-me: “Miúda, se estás aqui, tens cancro”. Ela era despachada, dizia-me tudo». Aconselhou-a a não preocupar-se com a queda de cabelo, afiançou que «os tratamentos não doíam assim tanto, vomitar não era assim tão terrível».
 
A rapariga, hoje com 29 anos, tornou-se personagem principal no seu diário. Alimentava a sua esperança, inspirava-a. Não foi a única. A mãe foi fundamental para a leveza de Marine durante todo o processo. «Estava sempre a brincar. Quando entrava no hospital, o humor dela refinava-se e eu fartava-me de rir», recorda Marine.
 
Dá nova gargalhada, como lá em casa, bem alto. Há um dia lembrado com ternura. O dia em que a mãe a proibiu de morrer. Tinha ido a casa passar o fim-de-semana. O ambiente à mesa de jantar era de cortar à faca. A matriarca apercebeu-se e decidiu dar «literalmente» um murro na mesa. Disse: “Minha gente, ninguém aqui vai morrer de cancro, quem manda nesta casa sou eu!”» Marine engasgou-se com a sopa ao rir. Todos riram, como sempre acontecera.
 

 «Mesmo no caos, é possível rir»

A jovem decidiu não deixar o terror vencer e delinear as suas memórias daquele tempo. Resolveu guardar boas recordações e assim foi. «Nós somos uma família muito feliz e bem-disposta. Às vezes, até tenho uma certa saudade de momentos… A minha família foi mais unida do que nunca, aprendi muita coisa. Houve muita entrega».
 
No dia 23 de Julho, fazia a irmã 18 anos, recebeu nova notícia. Decorrera um ano e ela «tinha a convicção acérrima de estar tudo bem». Mas o rosto transtornado da médica, já com os resultados dos exames, contava uma história diferente. Havia uma mancha suspeita na bexiga.
 
Marine saiu do hospital a correr. A mãe seguiu-a e choraram no caminho para casa. Combinaram mentir à família para não estragar o aniversário da irmã. Diriam não ter ainda os resultados dos exames. Mas esse era de facto um dia de sorte, como anteverá a mãe, e depois de cantarem os parabéns, o telefone tocou. «Comecei logo a chorar, tinha a certeza: era a minha médica. Pediu muita desculpa, tinha-se enganado. A mancha não era nada, era urina. Não tinha cancro».
 
A noite foi passada a festejar. Ligaram a toda a família a dar a boa nova. E não dormiram. De alegria.
 
Nos anos seguintes, a jovem não falou do sucedido. Preferiu esquecer. Seguiu para a universidade sem pensar no assunto. Até perceber que os fantasmas continuavam lá.
«Apercebi-me da quantidade de pessoas que tinham morrido.
 
Na altura, não me podia dar ao luxo de estar a sofrer por ninguém, tinha de sobreviver».
 
Um dia decidiu enfrentar os medos e começou a brincar com a doença. Começou a encontrar pessoas que gostavam de a ouvir e se sentiam inspiradas pela sua história. Em 2013, nascia o projecto da sua vida.
 
Começou como um blogue, onde contava a experiência de «forma descomplexada», iniciou-se nas palestras sobre o tema e acabou a escrever um livro. «Adoro escrever, adoro comunicar e adoro humor», conta Marine. Tinha trabalhado numa empresa de novos conteúdos, fazia stand up comedy. Tinha todos os ingredientes. Decidiu dedicar-se a um projecto de humor com um sentido maior. E assim nasceu o “Cancro com Humor”. Por este projecto, recebeu no mesmo ano o prémio Jovem Inspirador. E a distinção Mulheres Extraordinárias, da sapataria Zilian.
 

 "Cancro com Humor" é o projecto em que fala da doença de «forma descomplexada»

Depois do primeiro livro, veio o segundo. Nos últimos cinco anos, Marine fez centenas de palestras. Aprendeu a lidar com a morte, com as perdas. Sente-se mais leve. «Cheia com o feedback extraordinário das pessoas, dos doentes». Em breve, a sua história chegará a um público bem maior. A Sociedade Europeia de Oncologia Pediátrica vai traduzir o “Cancro com Humor” para inglês.
 
Deve a força, assegura, a Ana Luísa, o ar fresco do seu internamento. «Sem ela, o rir muito alto, brincar, desenhar, escrever, tinha-me ido abaixo». Não foi. Brincou também e, transmitindo a tremenda alegria dos seus dias, passou a ajudar outras pessoas a enfrentar os medos.
 
Houve também o tal momento em que Marine se definiu como ser humano. Naquela noite no hospital, percebeu que, sem a sua força, os pais se iriam abaixo. Por isso, por amor, decidiu «estar impecável» no dia seguinte, quando a fossem visitar. Provou, como conta no seu livro, que mesmo no caos é possível rir. E ela riu.
 
 
 
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