Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
17 dezembro 2016
Texto de Miguel Rego (nutricionista) Texto de Miguel Rego (nutricionista)

Dar sabor à vida

​​​​Aprender a cozinhar e comer aos 75 anos.​​​

Oito da manhã, de um dia comum. José, reformado, tinha 75 anos de idade, bem marcados em cada ruga da sua face. Era um homem de porte altivo, resistindo estoicamente a vergar-se ao peso do tempo. As mãos, de dedos finos, pareciam mais as de um pianista do que as de um carpinteiro.

Depois do AVC, no hospital emagrecera muito, ao ponto de caberem dois como ele nas calças do fato que usara no dia do seu casamento.

Os dias frios anunciavam o Outono e José, viúvo, ouvia a cada manhã as notícias, enquanto preparava o pequeno almoço.

Pegou na faca e barrou o pão com um pouco de um creme vegetal, ordens do nutricionista. Um rapaz simpático, pensava José. Conhecera-o depois de sair do hospital. No primeiro encontro disse-lhe: «O Sr. José está desnutrido», depois de o pesar e medir, usando uma fita como a dos alfaiates.

Verteu um pouco de café na caneca. Leite era coisa que lhe dava cólicas. O nutricionista sugeriu-lhe leite sem lactose, ou iogurte, misturado com fruta. Com o frio, preferia uma bebida mais quente, como o café ou o chá, uma bebida boa para dias frios e sombrios. Beber mais líquidos ajudava o intestino a funcionar.

Mastigava lentamente o pão, que tinha mergulhado no café, para ficar mole. A prótese dentária dava-lhe problemas. Os alimentos mais duros eram um martírio para as gengivas. Agora coze todos os alimentos muito bem, como as maçãs, com um pau de canela. 

Com a viuvez, José teve que se reinventar, passando a cozinhar as refeições, o que para uma só pessoa é um transtorno, nunca se consegue acertar com as quantidades. O que lhe vale é o congelador e as caixas de plástico onde vai guardando as sobras. Até sopa já congelou.

Às vezes era mais fácil sair de casa e ir comer o prato do dia, mas, por muito que procure, servem-lhe sempre comida engordurada. Em 51 anos de casamento, não houve um dia sequer, um só, em que a sua mulher lhe tivesse apresentado um prato derramando gordura. A sua Filomena gostava de lhe fazer uma sopa à lavrador, com couve portuguesa e feijão vermelho, que lhe davam a consistência certa.
 
Era nos pratos de peixe que Filomena excedia todas as medidas da arte culinária. O seu bacalhau com grão era digno de antologia. José fechou os olhos e conseguiu imaginar o aroma inconfundível do grão de bico. O nutricionista tinha insistido para que usasse mais vezes as leguminosas, por serem ricas em proteínas.

Ainda era difícil ficar sentado por muito tempo. Estava magro. À saída do hospital pesava 50kg, era uma sombra de si mesmo. Foi difícil recuperar do AVC e voltar a mastigar correctamente os alimentos, sem se engasgar. «Precisa de comer mais proteínas, o ovo é bom para isso», palavra de nutricionista. Aprendeu a preparar ovo batido com o iogurte natural que derramava no macarrão acabado de cozer. Com orégãos, exalava um aroma muito agradável e prescindia do sal.

«Todas as pessoas podem cozinhar!» – anunciava um famoso Chef e, na verdade, depois de viúvo, em homenagem à melhor Chef que conheceu, José passa, agora, mais tempo na cozinha, em especial quando vai alguém lá a casa, como a Rita e a Joaninha, as suas netas, que lhe pedem que faça empadão de carne. Mas José também gosta de surpreendê-las com uma bela posta de salmão grelhado acompanhado  de uma mistura colorida de brócolos, cenoura, tomate encarnado e manjericão.

Pousou por instantes o olhar no balcão, onde mantém um pequeno livro com conselhos nutricionais. Foi com ele que aprendeu que o salmão é rico em vitamina D. Ele que pensava que não precisava de nada disso porque sempre apanhou bastante sol. Mastigou o último pedaço de pão, sorveu com calma o café, sentindo o calor da caneca nas suas mãos. Aos 75 anos, José descobriu que cozinhar para si e, em especial, para a sua família, era a forma de se manter motivado e feliz por partilhar com afecto sabores e aromas que também contavam a sua história. 
Notícias relacionadas