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18 julho 2018
Texto de Oriana Barcelos Texto de Oriana Barcelos Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Dar a volta à base

​​​​​​O desmantelamento progressivo da Base das Lajes sente-se nas ruas e na economia local.

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Farmácia Cabral - Praia da Vitória, Ilha Terceira


Poderia dizer-se, à primeira vista, que a Farmácia Cabral ocupa um lugar privilegiado: em frente ao edifício da Câmara Municipal da Praia da Vitória, na Praça Francisco Ornelas da Câmara, o espaço está no coração da pequena urbe da Terceira, onde a vida se adivinharia um pouco mais agitada. Só que a cidade mudou. Primeiro, e aos poucos, os serviços foram sendo deslocalizados para a periferia; depois, a população foi decrescendo em número – as famílias americanas que antes viviam na Base das Lajes deixaram de aterrar ali, naquela que é segunda ilha mais habitada dos Açores. Essa falta sente-se, hoje, nas ruas e na economia local.​

Há quatro anos, quando comprou a farmácia, Berto Cabral, que sempre viveu na Praia da Vitória e que nunca equacionou sequer deixar a cidade, conhecia bem os obstáculos em que tropeçaria. Filho de comerciantes, sabia ainda que nos negócios não há fórmulas mágicas. Num lugar assim, o que há é uma condição fundamental: a fidelização dos clientes. Por isso, aceitou o risco e fez-se ao desafio – cortou nos gastos, alargou os serviços e apostou numa equipa jovem e mais habilitada. Não é isso, ainda assim, que faz com que Evaristo Teixeira visite, todas as semanas quase sem falhar, a Farmácia Cabral.

Evaristo Teixeira, 74 anos, será, como é bom de ver, um dos fregueses mais assíduos do espaço na Praça Francisco Ornelas da Câmara e, seguramente, um dos mais bem-dispostos. Se passa a porta, vem de mãos nos bolsos, sorriso traquina no rosto e com coisas para contar. Provavelmente, falará da sua caminhada matinal: dez quilómetros, todos os dias desde há sete anos, quando achou que era tempo de combater a preguiça a que as pernas e o coração se habituavam.


Evaristo Teixeira, 74 anos, não troca de barbeiro, de ourives e de farmácia por nada deste mundo

É um homem de hábitos: corta o cabelo no mesmo barbeiro, compra lembranças aos netos no mesmo ourives e vem à Farmácia Cabral desde sempre, mesmo antes de ser Farmácia Cabral. «O meu pai era muito amigo do d​r. Eugénio, que morava aqui ao lado. Quando saíamos da casa dele, vínhamos aqui buscar os remédios. E continuei a vir, desde há 60 anos. Nunca fui maltratado, sou sempre bem recebido, sou amigo deles, brinco com eles», conta.


Os laços entre Evaristo Teixeira e a farmácia são antigos. O pai já vinha aqui

Às vezes, vem só dizer olá. Outras, vem buscar medicamentos para si, para a mulher e para a sogra de 93 anos que está acamada. Evaristo Teixeira teve melhor sorte: safou-se de um cancro na bexiga que o levou à sala de operações três vezes em quinze dias, mas que o deixou mais desperto para a vida. Agora, está bem e é o responsável pelas voltas da família.

Hoje, que tem mais tempo, demora-se nas memórias. Tal como Berto Cabral, Evaristo Teixeira nasceu e vive, ainda, no concelho da Praia da Vitória – nas Lajes, para ser mais preciso, junto à base militar onde trabalhou desde os 11 anos, até se reformar. Ele, tal como o farmacêutico, também viu a cidade mudar e entristecer um pouco com a saída dos americanos. Nas ruas já não se vê carros de matrícula estrangeira, nas casas já não há meninos loiros a correr à volta das saias das babysitters da ilha Terceira. Foram-se os militares e, com eles, o trabalho. Nalguns casos, foi-se o dinheiro para comprar até os medicamentos.

O proprietário da Farmácia Cabral está atento a esses problemas. Afinal, um farmacêutico nunca é só um farmacêutico: é um observador, é um gestor, mas também um amigo e um facilitador. «Ser farmacêutico, hoje, tem esse duplo lado: temos de saber de medicamentos, de doenças, e temos de ter um lado humano que hoje é indissociável da profissão», sublinha.

É da conjugação dessas perspectivas e de uma análise cuidada sobre o futuro das farmácias em Portugal e, sobretudo, nos Açores, que Berto Cabral vai liderando o trabalho no espaço da Praça Francisco Ornelas da Câmara, atento às particularidades da cidade onde vive, mas também às mudanças que se adivinham no mundo farmacêutico.

«O mais importante é garantirmos a adesão das pessoas à terapêutica. Por outro lado, temos de olhar para a sustentabilidade das farmácias, porque não me parece que se queira que elas fechem e, com isso, se mantenham os problemas, até porque a acessibilidade ao medicamento ficaria condicionada. É importante garantir que as pessoas têm a sua medicação e que as farmácias conseguem sobreviver. O caminho vai passar pelo incremento da oferta de serviços. Hoje, até o próprio espaço das farmácias está diferente: as áreas são maiores, quase todas têm um gabinete para receber o utente... Tudo isso decorre exactamente da necessidade de oferecer outros serviços às pessoas para, por um lado, fidelizar, e por outro, diminuir a dependência do medicamento. A farmácia tem de continuar a afirmar-se como um espaço de saúde, um espaço de prestação de cuidados de saúde», considera.

É por isso que, na Farmácia Cabral, para além da dispensa de medicamentos, se faz testes bioquímicos, de colesterol, de triglicéridos e de glicémia, consultas de nutrição e venda de suplementos alimentares. A farmácia mudou, é certo – adaptou-se às exigências da maioria dos clientes. Não de todos, necessariamente. A Evaristo Teixeira, por exemplo, basta-lhe que a farmácia se mantenha no mesmo lugar daquela cidade açoriana em mudança, de portas abertas, de sorriso pronto a receber a sua boa-disposição e as suas histórias sobre as caminhadas matinais.
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