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12 dezembro 2018
Texto de Maria Jorge Costa Texto de Maria Jorge Costa Fotografia de Pedro Loureiro e Luís Silva Campos (estúdio) Fotografia de Pedro Loureiro e Luís Silva Campos (estúdio)

«As farmácias e os centros de saúde são complementares»

​​​​​​«Devemos aprender com os nórdicos a estar de bem com a vida».
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​REVISTA FARMÁCIA PORTUGUESA: Como é um dia normal da directora-geral da Saúde?
GRAÇA FREITAS: Começa muito cedo, para ter pelo menos meia ​hora para reflectir sem interferências xternas. Sem telefone a tocar ou pessoas a quererem falar comigo. Começo a seleccionar os e-mails mais importantes, vejo a minha agenda, leio dois ou três artigos. Depois depende se é um dia com crises – e nesse caso entra-se noutra rotina. Até as crises e as emergências em saúde pública têm rotina. Não é o caos.


A directora-geral da Saúde isola-se no início de cada dia, sem telemóvel ou outras interferências externas​

A Direcção-Geral da Saúde tem um protoloco de crise? 
Exactamente. É como se fosse um protocolo, temos planos de acção. Por exemplo, na altura do calor extremo havia uma hora pré-definida para um briefing e nessa hora discutíamos o assunto, delineávamos acções e marcávamos nova reunião para o final da tarde. Num dia de rotina normal há reuniões programadas, pessoas para fazer despacho e solicitações fora da DGS. O director-geral é muito solicitado para intervenções externas.


«O envelhecimento activo começa com as opções que fazemos na adolescência, quando nos achamos eternos», afirma Graça Freitas

Como directora-geral da Saúde tem de preocupar-se com a saúde de todos. Que ideias tem para o envelhecimento saudável activo?
O envelhecimento activo não começa quando nos tornamos velhos. Tem tudo a ver com opções durante a vida, incluindo a altura em que nos achamos invulneráveis, depois da infância e os primeiros anos da adolescência. Sentimo-nos eternos, não temos as maleitas da infância, já não sentimos a necessidade da protecção da nossa família. Vamos para o mundo cheios de vigor e de força, e pouco conscientes de que um dia seremos idosos.

Sente que é preciso intervir mais junto dos adolescentes?
Não sou a favor da medicalização mas sou a favor da promoção da saúde e de intervenções saudáveis ao longo da vida. Esses grupos mais jovens têm de aprender a ter ao longo da vida comportamentos e formas de estar para chegar a um estado de saúde melhor quando atingirem uma idade mais frágil, do envelhecimento fisiológico. Nós fomos programados para envelhecer, mas temos de tentar controlar o melhor possível os efeitos do envelhecimento.

A esperança média de vida aumentou mais de dois anos na última década.
Temos em Portugal uma coisa muito boa: vivemos muito, sobretudo as mulheres. Aos 65 anos, a esperança de vida é muito boa. Mas os anos de vida com saúde não são assim tão bons. Se nos compararmos com os países nórdicos, ainda há um imenso potencial a atingir. Dir-me-ão que eles têm componentes genéticas favoráveis. Talvez sim, mas têm também comportamentos de vida diferentes. Têm uma vida muito activa. Nós somos sedentários. Os adultos jovens não praticam qualquer tipo de actividade física, ou fazem-no muito abaixo do recomendável. Temos o problema dos hábitos tabágicos e do consumo excessivo de álcool. Não estou a dizer para as pessoas deixarem de viver e usufruir, mas isso pode ser feito com uma vida saudável e activa, promotora do tal envelhecimento activo e saudável. Assim também podemos evitar a mortalidade prematura: mortes antes dos 70 anos.

Como pretende reduzir a mortalidade prematura?
Não podemos culpar quem é vítima de um ataque cardíaco aos 50 ou 60 anos. As coisas na saúde são multivariadas, devem-se a muitos factores. Alguns dependem de nós, outros têm a ver com a genética, outros com a forma como o ambiente impacta a nossa saúde. E um bocadinho com a actividade directa dos serviços de saúde. Mas comportamentos saudáveis são excelentes para chegar bem a idades mais avançadas. Com qualidade de vida, com autonomia, com menor fragilidade. A partir dos 65 anos
as mulheres têm garantidos mais vinte anos à vontade. Esses anos devem ser usufruídos com autonomia e bem-estar. 

Já reparou que, com a dificuldade de fixar profissionais e o encerramento de muitas extensões de centros de saúde, sobretudo no Interior, para muitas pessoas o único acesso de proximidade ao sistema de saúde é a farmácia?
As farmácias são um parceiro fundamental. Em campanhas como a da gripe são um grande promotor da vacinação. As farmácias têm profissionais treinados para administrar esta vacina, cumprem todos os protocolos de segurança, registam as vacinas no sistema do Serviço Nacional de Saúde. As farmácias são um parceiro do Ministério da Saúde. Fazem parte do sistema de saúde. Todos os anos há pessoas a optar por vacinar-se na farmácia, por lhes ser mais fácil. Mesmo aquelas para quem a vacina é gratuita. As farmácias estão mais ramificadas do que os centros de saúde. Somos complementares. Não há aqui nenhuma competição, há uma colaboração saudável.

As campanhas públicas da Saúde não devem cruzar-se mais com a Educação? Ainda há pouco se verificou uma redução dos tempos lectivos de Educação Física…
Essa sintonia tem-se acentuado nos últimos anos e tem levado a alterações. A Saúde não trabalha sozinha, vamos deixar isto bem claro. A Saúde deve estar em todas as políticas. Em idades determinantes para o resto da vida, a Educação é fundamental. A parceria entre a Saúde e a Educação é natural e inevitável. Temos de trabalhar juntos numa população que, salvo raríssimas excepções, está muitos anos no ambiente escolar. Esses anos são determinantes para a formação do próprio e para a influência no tecido social. A Saúde não pode ser um intruso na vida da escola, mas sim um parceiro, para aqueles cidadãos pequeninos terem acesso a uma alimentação cuidada e saudável, acesso às vacinas e a possibilidade de fazer actividade física. Tem de se promover uma cultura de andar a pé, de bicicleta, de mexer-se.

Voltamos ao exemplo nórdico…
Quando se vai a um país nórdico vemos crianças com bicicletas, trotinetes, triciclos, na vida normal. Aquelas pessoas vão continuar pela idade adulta a ter esses comportamentos. Interiorizam-nos no dia-a-dia, desde pequeninos. Cada vez há mais estudos a evidenciar a importância dos primeiros anos de vida. Não é fazer de vez em quando uma grande dieta ou grandes corridas para perder peso. Temos de cultivar um padrão de comportamento saudável, sem deixar de ser prazenteiro. As coisas têm de nos dar prazer.


«Em Portugal, temos o mau hábito de levar as crianças de carro até à porta da escola. Somos sedentários»

Rejeitar uma vida sedentária, o tabaco e os disparates alimentares não significa viver de forma triste, é isso?
Não significa, não. Havia um mito no sul da Europa: Os nórdicos eram muito tristes e suicidavam-se muito. Não corresponde à verdade. Todos os estudos sobre bem-estar ou felicidade são extremamente positivos nesses países e a atitude das populações é de quem está de bem com a vida. Têm uma atitude positiva e não tem a ver com a riqueza material. É uma forma interiorizada de comportamentos promotores de hábitos saudáveis. Há pequenas mudanças acessíveis a todos. Sair duas estações de metro antes do emprego, não depender tanto do automóvel. Em Portugal, temos muito o hábito de levar as crianças de automóvel até à entrada da escola. Iniciam o dia de forma sedentária, digamos assim. Isso tem de ser lentamente contrariado. Estamos no bom caminho, as pessoas mexem-se mais, percebem que não é preciso fazer mudanças drásticas e impossíveis. Respondendo à sua pergunta, o trabalho com a Educação é fundamental.

Muitas campanhas de saúde pública usam um discurso negativo e recriminatório. Não fará sentido mudar?
Algumas campanhas podem não ter o efeito desejado porque vão pela negativa, mas têm um efeito positivo: recordar o assunto. Agora, devemos ir mais longe, não podemos culpabilizar as pessoas. Para quem é dependente de tabaco, por exemplo, tem de haver uma solução. É um vício. Não estou a criticar, apenas a constatar. É preciso dar soluções às pessoas. Estamos a fazer uma forte aposta nas consultas de cessação tabágica. Muitas pessoas querem deixar o vício mas não conseguem. Sendo uma adição, necessita de apoio. Tem havido um investimento muito grande: todos os agrupamentos de centros de saúde têm neste momento consultas de cessação tabágica. Há comparticipação do medicamento. Compete ao Ministério da Saúde esse tipo de campanhas. O melhor era não ter começado a fumar… mas, já que começou, nós estamos aqui para o ajudar.

Acha que as pessoas sabem dessa consulta de cessação tabágica?
Se não sabem é porque não estamos nos canais certos. Podemos não estar a fazer a divulgação nos canais adequados e temos de fazer tudo para lá chegar.

É um público-alvo muito grande…
É muito grande, é difícil chegar. Mas, se calhar, os que estão prontos para deixar de fumar não começaram há dois dias ou três anos. Estão mais adiante e finalmente tomam a decisão de deixar. Estas pessoas devem ser ajudadas por profissionais. É como a história da educação alimentar ou reeducação alimentar: não se deve exigir às pessoas coisas que, sozinhas, não sejam capazes de fazer. Há profissionais que as podem ajudar.

Falou recentemente da preocupação com o desconhecimento sobre a saúde dos jovens adultos homens. Porquê esta inquietação?
Ao longo da minha vida profissional, que já é longa, fui assistindo ao estudo, protecção e atenção sobre variadíssimos grupos chamados de risco. A grande preocupação sempre foi com as crianças e as mães, a saúde materno-infantil, o que tão bons resultados deu. Por via da saúde reprodutiva e da maternidade, houve mais atenção às mulheres. Outra área muito focada é a da saúde dos idosos. Sinto que o grupo menos conhecido de todos é o dos homens jovens. Qual a prevalência de factores de risco, a incidência de doenças, quando começam a ocorrer as complicações? Entre os 20 e os 60 anos, os homens consideram-se saudáveis. Os serviços de saúde nunca fizeram um programa especialmente dedicado à saúde reprodutiva masculina. Tenho a obrigação de promover a investigação nesse grupo.

Como vai fazer isso?
Eles estão no sistema, isso é que é interessante. Se esta entrevista fosse há uns anos, eu teria de chamá-los, fazer estudos. Eles estão tão registados no sistema como as mulheres. Podem não ir todos, mas os que vão estão registados. Pode fazer-se estudos por amostragem, com o apoio da Academia.

Tem outras prioridades?
Como directora-geral da Saúde, quero perceber as reais necessidades da população. Não as necessidades que queremos criar ou que a indústria quer criar. Vou dar um exemplo: quais são as reais expectativas e necessidades das pessoas no fim da vida? Se nos perguntassem a todos se queríamos ser sujeitos àquilo a que se chama “encarniçamento terapêutico”, quantos de nós diriam: «Eu quero viver mais três dias à conta de uma grande intensidade terapêutica em cima de mim.»?

Esse tema daria uma conversa inteira.
Dei este exemplo para fazer perceber a ideia. As pessoas preferem estar nos hospitais ou ficar lá o mínimo tempo possível? Ser tratadas na fase aguda e depois ir para casa? Com condições de acompanhamento. Temos de começar por algum ponto. Como se diz no Alentejo, temos de começar a desenlear estas meadas. Nós somos todos utentes da saúde, todos vamos passar pelas mesmas circunstâncias, pelas mesmas consultas, pelas mesmas análises, pelas mesmas coisas. Precisamos de perceber as necessidades e as expectativas que as pessoas têm em relação à sua saúde e ao sistema de saúde.


«Comecei há muitos anos a ter cuidados com a saúde. Vigio a alimentação e tenho actividade física moderada», conta Graça Freitas

Tem muitos cuidados com a sua saúde?
Tenho bastantes. Comecei há muitos anos. Apercebi-me de que, se queria ter uma esperança de vida pelo menos igual à das mulheres da minha família, teria de começar. Tenho mais cuidado com a alimentação e tento fazer actividade física moderada, porque não tenho grandes aptidões atléticas.

Nestas funções, consegue ter vida pessoal?
Consigo. Tive de prescindir de uma coisa de que gostava muito, as minhas plantas. Gosto muito de jardinagem. Tive de prescindir, porque raramente chego a casa de dia, a horas de as tratar. Fiquei com duas ou três de estimação, mas tenho vida pessoal. Gosto muito de ler, estou a ler ligeiramente menos.

O que está a ler?
Olhe, incrivelmente, tomei uma decisão quando fiz 60 anos, ler o “Guerra e Paz”, e como agora foi publicada uma edição em livros pequenos, estou a lê-lo finalmente. Cada livro é pequeno, pode ir para a cama facilmente.

Gosta de estar em família?
Tenho uma família nuclear pequena. Não tive filhos, mas tenho a sorte de ter dois enteados fabulosos, dois sobrinhos fabulosos e umas netas gémeas fantásticas. Gémeas iguaizinhas, lindas. Tenho uma família normalíssima, equilibrada.

Ainda tem mãe…
Ainda tenho mãe. O meu pai já morreu mas, apesar de tudo, para homem, também atingiu a esperança de vida média, o que me deixou satisfeita. 

Tinham hábitos de vida saudável?
A minha mãe tem hábitos de vida muito saudáveis. O meu pai foi um caso interessante. Tinha uma vida muito pouco saudável e foi daqueles adultos que aos 50 anos teve um enfarte. A partir do momento em que se viu confrontado com a morte, mudou radicalmente de vida, incluindo hábitos tabágicos muito acentuados. Não precisou de apoio. Os 15 dias de internamento levaram-no a modificar-se. Não tenho a mínima dúvida de que o facto de ter sobrevivido a um enfarte aos 50 anos lhe deu mais 30 anos de vida,
com alguma qualidade.

Sei que gosta de viajar.
Essa é a minha grande, grande paixão. Tenho investido imenso.

O que a atrai tanto?
Eu gosto da natureza e gosto do património construído. Mas o que me fascina mesmo são as pessoas de cada povo, saber como vivem. E tanto me fascina alguém nos confins da Ásia como no Norte da Europa. Pelas diferenças, pela diversidade. Não procuro só sítios muito exóticos. Vou dar um exemplo, que até foi em serviço. Viajei uma vez para uma cidade belga e fiquei absolutamente fascinada pelas manhãs. A cidade era plana, muito segura e amigável, e logo de manhã cedo havia centenas de crianças sozinhas a irem para a escola a pé, de trotinete, de bicicleta. Miúdos mais velhos, miúdos mais novos. Um dia perguntaram a várias pessoas das áreas das ciências quais eram os indicadores para definir uma cidade saudável. Venceu o que respondeu o indicador "número de crianças que vai a pé para a escola".
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