Política de utilização de Cookies em Revista Saúda Este website utiliza cookies que asseguram funcionalidades para uma melhor navegação.
Ao continuar a navegar, está a concordar com a utilização de cookies e com os novos termos e condições de privacidade.
Aceitar
18 março 2016
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de Pedro Loureiro Fotografia de Pedro Loureiro

Ana Paula Martins: O anel da papel

​​​​​​​​​​Nasceu em Bissau, na década de 60, e por lá cresceu até regressar a Portugal no pós-25 de Abril. As memórias de infância ainda marcam a Bastonária da Ordem dos Farmacêuticos.​

​Palita, Palita! Na hora da comida, o chamamento ecoava no mato. 

- Onde se meteu a miúda? 

- Ora, anda por aí a correr.  

Corria descalça e era feliz assim, rápida como um felino. Tanto que os pés de menina ficaram imunes aos picos do caminho. Se vinha chuva, abria os braços ao céu e dançava. Aprendeu com os pretos a dançar como os pretos. Tomava banho em calções. Comia mãos cheias de cajus, de fazer inveja aos macacos. Foi criada a quiabos e carne de galinha, cozinhada em óleo de palma e malaguetas. A ela, nem o picante picava. Toda a alegria eram os bens da natureza. 

- Eu só vi pobreza. Na Guiné Bissau ninguém vivia realmente bem, convivi só com a pobreza. ​

Aos olhos da criança, a vida era mesmo assim. E assim fechou para sempre o coração à faca afiada da revolta. Aprendeu antes que a boa prática é o caminho para escalar valores e mudar o mundo. 

O pai, Aniceto António, era o único farmacêutico de Bissau. Fazia de farmacêutico de oficina e hospitalar, dirigia o laboratório Proquil e ainda arranjava tempo para dar aulas de Química no liceu. Na África portuguesa dos anos 60, um profissional de saúde não fazia fortuna mas era um bem raro. Já a mãe, Maria Angélica, teve como missão alfabetizar. Era normal as mulheres instruídas tornarem-se professoras primárias. Os meninos brancos entravam na escola pela porta da frente e os meninos pretos e a Palita pela porta de trás. 

- Era uma mancha negra. E, no meio, eu. 

Aniceto trancou a porta da família ao racismo, à indignidade e a qualquer privilégio. Quando terminou a segunda classe, Ana Paula pediu-lhe uma bicicleta como prémio de bom aproveitamento. 

- Homessa. Não fizeste mais do que a tua obrigação. 

Não morreu sem lhe comprar o presente, mas já não viu a alegria da filha. Estava à espera de «uma boa oportunidade» para lhe dar a bicicleta, mas sem a desviar do bom caminho. 

No 25 de Abril, estava com oito anos. Logo no dia seguinte, foi entregue ao cuidado de uma hospedeira da TAP e veio viver com os avós para Lisboa. Ana Paula pertence à geração de “retornados” que não retornaram coisa nenhuma, porque não nasceu aqui, nem foi cá que aprendeu o mundo. A bastonária da Ordem dos Farmacêuticos ainda invoca a filiação étnica dos nascidos em Bissau: 

- Eu sou papel. 

O sol africano, que ilumina a floresta virgem, ficou a guiá-la na corrida. Ana Paula calçou sapatos de salto alto e vestiu saia e casaco de executiva, mas continuou rápida como um felino. Farmacêutica, como o pai e os avós, atingiu todas as metas nas carreiras de investigação, da indústria e universitária. Isso pareceu sempre natural e fácil aos olhos de quem a conhece. E são muitos. Ana Paula Martins é um leão a fazer amigos e cúmplices, perdeu-se uma diplomata de elite. 

 - A cultura africana é uma cultura de afectos.  

Na tomada de posse, transformou estas palavras em actos. Interrompeu o discurso para vir à plateia abraçar o ex-bastonário Carlos da Silveira: 

- Fiz como me ensinou, Professor. Li tudo, para o que desse e viesse.  

E voltou a descer do palco, para se agarrar a Maria Odette dos Santos Ferreira: 

- De si herdei a determinação e a persistência pela verdade e pelo bem comum. Ainda hoje é a si que tenho como referência, ao decidir os caminhos que devo escolher para uma vida que faça sentido. 

Odette também tem raízes africanas porque cresceu nos Bijagós, arquipélago de 88 ilhas pertencente à Guiné Bissau. 

- Somos tão parecidas como a abelha e o mel, o arco-íris e a chuva, não seríamos mais parecidas se fôssemos mãe e filha. 

São da família dos vulcões adormecidos. Andam com a educação e a gentileza colada à pele, mas entram em erupção se as atacam nos princípios. Senhoras de uma energia sem limites, não podiam viver para sempre dentro de uma universidade ou empresa. A antiga Comissária Nacional de Luta Contra a Sida batia as ruas do Casal Ventoso, do Intendente e de qualquer canto dominado pela droga e a prostituição. Na tomada de posse, o anel de curso de Maria Odette foi por magia parar à mão da bastonária. Ana Paula vai andar três anos pelos caminhos de Portugal, até conhecer os farmacêuticos todos. Na tomada de posse, o anel de curso de Maria Odette foi por magia parar à mão da bastonária.​

Notícias relacionadas