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1 fevereiro 2015
Texto de Filipe Mendonça Texto de Filipe Mendonça Fotografia de Júlio Lobo Pimentel Fotografia de Júlio Lobo Pimentel

«Achavam que eu estava maluca»

​​​​​​​​​​​​​​​​​​Odette Santos-Ferreira conta como foi possível travar a s​ida com a rede de farmácias, quando Portugal inteiro tinha pânico.

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Na portaria da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa surge o primeiro desafio. «Não é fácil encontrar o gabinete da doutora», brinca a recepcionista. Verdade. É muito mais fácil encontrar a própria Odette Ferreira.

É assim desde o tempo da Universidade. Os professores perguntavam: «Quem é que é aquela rapariga de cabelo negro e olho vivo que está sempre a reclamar?» É farmacêutica, cientista, contadora de “estórias”, cara inesquecível da Comissão Nacional de Luta Contra a Sida. E é a mulher que um dia acreditou, quando isso parecia uma loucura, que as farmácias podiam trocar seringas e dizer “não” à sida.

Odette Ferreira é daquelas mulheres que nunca está apresentada e parece querer marcar o ritmo de quase tudo, até desta entrevista. «Espere lá, já lá vamos», foi a frase mais repetida ao longo das três horas de conversa.

FARMÁCIA PORTUGUESA - Ainda se lembra do dia em que teve a ideia de lançar o programa...
ODETTE SANTOS-FERREIRA - (Interrompe) Espere lá. Já lá vamos. Isto foi um processo. O meu avô era farmacêutico e foi com ele que aprendi a ter a imagem da farmácia com dignidade. Sim, porque isto não começou nada bem. Nem sempre as farmácias tiveram boa imagem. Eram vistas como o sítio onde se vendiam os medicamentos, mas onde farmacêutico nunca punha os pés e se limitava a alugar aqui- lo a umas meninas... Eu sempre disse que aquela não era a minha ideia de farmácia. Queria seguir o exemplo do meu avô. Os queimados do hospital de São José eram tratados com uma pomada que o meu avô inventou. Ele só fazia especialidades. O meu avô era um santo para os doentes e era essa a ideia de dignidade que eu tinha, e tenho, da farmácia.



Então já percebi, foi por isso que teve a ideia...
(Interrompe) Espere. Já lá vamos. Tem de perceber que eu sempre gostei de desafios. A farmácia, como estava, não tinha interesse nenhum para mim, a não ser a parte das análises. Mas a Ordem dos Médicos dizia que os farmacêuticos não podiam fazer análises. Essa foi a minha primeira batalha. Um dia, fui às Finanças para abrir um laboratório de análises clínicas e não me deixaram.  Pedi logo para ver onde é que isso estava escrito em Diário da República. O homem, só para me despachar, autorizou. Confesso que eu só queria mesmo mostrar que um farmacêutico podia ter um laboratório, porque eu nem queria viver daquilo. Ganhei essa batalha e outras. Queria demonstrar que o farmacêutico não era aquilo que achavam que ele era. Não éramos técnicos de drogaria. Não somos uma licenciatura de segunda. Eu tenho um sonho: Não morro sem as farmácias serem os primeiros centros de cuidados primários de saúde. Repare no interior do país. Fecham as urgências, fecham os centros de saúde, onde é que as pessoas vão? Às farmácias.

Em 1992, como foi possível uma farmacêutica chegar a Coordenadora da Comissão Nacional de Luta Contra a Sida?
O ministro Arlindo Carvalho ligou-me a convidar. Pedi tempo para pensar. Era um lugar que tinha sido sempre ocupado por médicos. Passados uns dias, estava a ver uma entrevista da Margarida Marante ao Machado Caetano (antigo coordenador) e ele disse que eu era boa cientificamente, mas que para falar com os médicos era preciso linguagem especial. Eu disse logo para mim: «Ai é? Então, espera lá». Liguei para o ministro e disse: «Aceito». Mas pedi-lhe para chamar todos os directores dos serviços de infecciologia, para saber se aceitavam uma farmacêutica naquele cargo. Aceitaram.

Agora sim, lembra-se do dia em que teve a ideia de lançar o Programa Troca de Seringas nas farmácias?
Não posso dizer que houve "o dia”. Eu sabia que tinha de combater a estupidez das pessoas terem medo. Durante um ano e meio fui a única a fazer os testes do VIH em Portugal. Fui eu que identifiquei o primeiro caso e depois os outros. À medida que ia tendo resultados, eu só pensava: «Meu Deus, onde é que isto vai parar?» Quando comecei a apresentar os resultados, ninguém acreditava. Eu repetia para mim: «Queira Deus que vocês estejam certos e eu errada». Mas não. Percebi que os toxicodependentes e os homossexuais eram os grupos mais infectados. Mas com os homossexuais era mais fácil falar e consciencializá-los.

Focou-se nos toxicodependentes...
Sim. Entretanto, todas as segundas-feiras a Polícia Judiciária vinha trazer (para análise) as seringas que tinha encontrado pelas praias, nos jardins, etc. Era preciso saber se estavam infectadas. Percebi que estávamos perante um real problema de saúde pública. Pensei: Temos de começar a trocar as seringas. Imaginei a forma mais eficaz de chegar aos toxicodependentes e disse: Não há melhor do que as farmácias. Naquele momento já havia condições óptimas para serem as farmácias a entrarem naquele tipo de programa, muito graças ao trabalho de dignificação e modernização feito pelo dr. João Cordeiro.



E as pessoas aceitaram a ideia?
Acha? (solta uma gargalhada tão grande que se dobra sobre a mesa). Achavam que eu estava maluca. Diziam: «As farmácias nem podem vender seringas sem receita, quanto mais trocar». O João Cordeiro gostou da ideia, mas também tinha dúvidas. Claro que nas primeiras reuniões com os farmacêuticos eles diziam que não queriam os toxicodependentes nas farmácias porque afastavam a clientela. Depois, diziam para pôr na rua uma máquina de troca de seringas. E aí eu respondia-lhes: «No dia em que tiver uma máquina que é capaz de falar com as pessoas e dar conselhos, não preciso de vocês para nada». E disse-lhes: «Temos de mostrar que isto é um problema de saúde pública que pode acontecer ao vizinho, ao filho, ao sobrinho». Expliquei-lhes que tínhamos de quebrar juntos aquela corrente.

Mas havia, de facto, o problema legal das farmácias não poderem dispensar seringas. Como o resolveu?
Pois havia. Isso era mesmo um problema. Fui ao Procurador-Geral da República e expliquei-lhe o que se passava. Disse-lhe que não queria que as pessoas andassem a dizer que estava a fomentar o consumo de droga ao trocar seringas. Mas ele respondeu logo: «Já percebi que isso é um problema de saúde pública. Se tiver problemas, eu estou cá para responder».

Lembra-se desse dia 13 de Outubro de 1993? O dia em que foi lançado o Programa “Diga 'Não' a uma seringa em segunda mão”.
(Risos) Lembro-me. Começámos a levar pancada de todo o lado. Começou logo com os empregados das farmácias, que não queriam trocar as seringas. E eu expliquei-lhes: «Quem manda nas farmácias é o director-técnico. Este é um programa de saúde pública». Depois tive outra reclamação, dos diabéticos: «Parece impossível, a senhora dar seringas àqueles marginais e nós, que não temos culpa nenhuma de ser doentes, temos de pagar as seringas». Tive de dizer-lhes que não tinha culpa. A minha missão era evitar que a sida se propagasse. Entretanto, fui dizer à ministra (da Saúde) que estava a deixar-me numa situação incómoda, porque na verdade os diabéticos também deviam ter direito a seringas de borla. Mas depois até acho que resolveram isso.

E avançou num projecto experimental de três meses. Porquê?
Porque foi pago pela ANF (risos). Foi o tempo para convencer o Governo e a sociedade de que o programa era mesmo interessante. Nem a Comissão Europeia queria acreditar nisto, mandaram cá o presidente e tudo para ver se era verdade.

Alguma vez acreditou que este programa poderia ter a dimensão e o sucesso que teve?
Sempre tive esperança. Sou uma optimista por natureza. Isto tinha dois interesses paralelos. Por um lado, queria diminuir a transmissão do VIH nos toxicodependentes. Mas cá dentro, cá dentro mesmo, eu queria mostrar ao Ministério da Saúde o potencial dos farmacêuticos. No meu íntimo, repetia: «Vou mostrar a estes tipos quem é que nós somos. Vou mostrar-lhes que não estamos aproveitados». E ao mesmo tempo acreditava que seria capaz de transformar o toxicodependente, de marginal em doente crónico. Paralelamente, queria que a sociedade percebesse a estupidez que era marginalizar esta gente.

Quando é que percebeu que estava a dar resultado?
Logo três anos depois. Os números mostraram logo a diminuição dos infectados. E atenção, não foi só a sida. Foi também a redução da transmissão das hepatites.



Como é que surgiu a ideia de colocar uma unidade móvel no Casal Ventoso?
Era o principal centro de droga. Alugámos uma ambulância velha à Cruz Vermelha e o serviço era feito por estudantes de Ciências Farmacêuticas. O posto começou a trocar, em média, 2.500 seringas por dia. Mas antes disto tivemos de ganhar a confiança daquela gente. Por isso, montámos um centro de enfermagem e um centro social. Depois, tivemos de enfrentar os dealers que davam a droga em troca do kit para irem vender o material desse kit. «Só me faltava esta», dizia eu. Um dia, fui lá (ao Casal Ventoso) e quis falar com quem andava a trocar os kits por droga. Disseram-me para não ir. Chegaram a dizer que um dia teria uma bomba no carro (risos). Mas fui. Se todos tivermos medo, não se faz justiça. Fui lá. Fui ter com o tal homem, que na altura estava a injectar uma jovem na carótida, e disse-lhe: «Vamos fazer um acordo, eu não tenho nada a ver com a droga e o senhor não tem nada a ver com os kits». Ficámos conversados e nunca mais houve esse problema. Afinal, as coisas não foram tão fáceis como agora parecem.

Se o tempo voltasse para trás, faria tudo igual?
Tudo. Não me arrependo de nada. Tive a sorte de ter um parceiro extraordinário. Se não fosse a ANF, este programa não teria existido. Eu e a Anabela Madeira (da ANF) íamos às farmácias. Havia farmácias a trocar mais de cem seringas por dia. Tinham de ter um empregado só para isso. Ao mesmo tempo, fomos educando a população.

Porque é que acha tão importante reatar o Programa Troca de Seringas?
Nunca devia era ter sido interrompido. Sabe, há sempre interesses. A avaliação do pro- grama demonstrou que o Estado poupou milhões e que os toxicodependentes estavam a mudar comportamentos, estavam a sentir-se gente. Era um programa muito bem organizado. Agora, vai ser muito difícil recuperar as 90% das farmácias que faziam esta troca, porque as farmácias vivem dias difíceis. Acha que as farmácias não perdem tempo e dinheiro com isto? Agora, vai ser difícil.

Mas que mensagem deixa aos farmacêuticos?
É difícil. Os tempos são difíceis. Mas quero pedir aos farmacêuticos que continuem este trabalho de saúde pública, que mostrem que são profissionais de saúde responsáveis. Sei que é difícil terem o mesmo entusiasmo que tiveram no início do programa, quando ao fim do mês falta o dinheiro para pagar a fornecedores.


«EU NÃO TENHO IDADE, TENHO VIDA»
Três horas e vinte minutos depois, não tínhamos vontade de terminar a conversa. Há conversas que deveriam durar uma vida inteira, como as verdadeiras lutas. É esse o título do livro de Odette Ferreira, lançado em Novembro passado: “Uma Luta, uma vida”. Já à porta não disfarcei o embaraço: “Desculpe Professora, mas por razões profissionais vou ter de lhe fazer uma pergunta que noutras circunstâncias não faria: Que idade tem?” Odette Ferreira soltou o sorriso mais luminoso da tarde e disparou: “Eu não tenho idade, tenho vida”. E que vida.
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