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9 julho 2019
Texto de Mário Beja Santos (Técnico de Defesa do Consumidor) Texto de Mário Beja Santos (Técnico de Defesa do Consumidor)

A terra ficou sem farmácia, nós ficámos muito pior

​​​Ensaio sobre o encerramento das farmácias comunitárias no Interior do país.

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A minha querida Afurada Cimeira* vive rodeada de povoações, chamadas Troviscais, Atalaias, Amiosos, Bairradas, Marmeleiros, Palhais, Formigais, Derreadas, umas cimeiras outras fundeiras. Tudo tem a ver com aquele mundo de pedra que cerca o nosso rio, que depois de muitas voltas e arquivoltas, irá desaguar no Tejo, bem longe. 

Já fomos sede de concelho, até 1834. Da velha prosperidade guardamos uma procissão anual insuperável e passeios pedestres que atraem muita gente, do país e de fora. Há quem nos chame aldeia de xisto, mas somos freguesia. Temos uma bela ponte deixada por Filipe II, um atractivo mercado dominical, uma banda filarmónica, uma extensão de centro de saúde - onde vem médico de família três vezes por semana, um restaurante de ementa económica e, até muito recentemente, a farmácia da Dra. Amália, na Rua Direita. Era aqui que desaguavam os doentes da extensão do centro de saúde e das muitas pequenas aldeias próximas, vindos de táxi ou de carripana a gasóleo. Somos uma população envelhecida, mas com bomba de gasolina, minimercado e um conhecido hotel no topo do rochedo, com uma soberba vista sobre a grande albufeira.

Fui à consulta da Dra. Celeste Mouzinho. Felizmente, ela agora pode receitar seis embalagens por cada medicamento, e vou aviando conforme posso. A Dra. Amália tinha um completo controlo da situação, com tudo registado na ficha de doente, e mal ela percebia uma qualquer alteração nas terapêuticas, e se pressentia poder existir uma incompatibilidade, telefonava à Dra. Celeste e tudo se esclarecia. A minha confiança nestas duas profissionais de saúde era inabalável. Agora ando à deriva. 

A farmácia não foi para obras: fechou. Está tudo vazio. Tenho de ir à sede do concelho, a oito quilómetros de distância. Ainda fui falar com a funcionária da extensão do centro de saúde, para saber se ia abrir um posto de medicamentos aqui na terra, mas que «Não. As farmácias não conseguem aqui estar. Ninguém precisa de chuchas ou pode comprar cremes de pele, e assegurar a dispensa do receituário dá prejuízo», foi a resposta.

Como no poema de Bertolt Brecht, até agora o caso não me fazia mossa, fazia mossa a outros, mas deixou de me passar à margem. Acabo de sentir que a interioridade vai pesar na minha vida. Como todos os outros seniores e doentes crónicos, não posso viver sem medicamentos e sem que o médico de família me prescreva os exames. 

Nós aqui, na Afurada Cimeira, sabemos muito bem o que tem vindo a acontecer nesta interioridade. Desaparecem as estações de correios, as delegações dos bancos, as escolas, os tribunais, as carreiras de autocarro... Dos poucos jovens que por aqui resistem, parte trabalhava na farmácia. Até isso se foi quando deixaram fechar a porta de entrada do SNS, que nos valia sempre em caso de aflição.

Querem convencer-me de que o encerramento destas farmácias é uma fatalidade irresolúvel. Não acredito nisso, há muitas maneiras de encarar a coesão territorial. Vejam-se as medidas adoptadas para as regiões da Madeira e Açores; vejam-se os casos na Europa, como a Suécia, que estando pulverizada de ilhas, desenhou programas para permitir que as crianças vão à escola e as farmácias garantam o seu imprescindível serviço. Falta vontade e somos apenas velhos! 

Portugal é um país orgulhoso do acolhimento e da hospitalidade, de ser um admirável destino turístico, com segurança, com medalhas desportivas. Contudo, a rede portuguesa das farmácias, que está entre as cinco melhores do mundo, não é valorizada. Há um estranho entupimento na decisão política quanto ao destino desta que é para nós, no interior, uma necessidade básica. Era pela farmácia que se fazia o nosso acesso à saúde, e bem mal tratada tem sido, a despeito de ser garante de programas de Saúde Pública, de atender com resultados altamente satisfatórios certos doentes crónicos, de o aconselhamento farmacêutico ser cada vez mais importante com o envelhecimento da população. 

Uma boa cobertura farmacêutica garante o direito à saúde em igualdade e toda a gente sabe que a rede das farmácias pode ser aproveitada para garantir mais e melhores serviços e contribuir para a gestão da doença crónica. Por que será que se deixam fechar? Será falta de imaginação?
Cuidemos de salvar as farmácias antes que desapareçam outras, como esta, a da minha querida Afurada Cimeira, que nos vai sair do bolso e ao SNS também.

*Apenas os locais e nomes de pessoas neste ensaio são ficcionados. Tudo o resto é um retrato fiel da realidade do nosso país.
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