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18 julho 2018
Texto de Irina Fernandes Texto de Irina Fernandes Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes Fotografia de Miguel Ribeiro Fernandes

A menina do mar

​​​​​Há 61 anos que Jesuína Freitas está ao leme da farmácia.

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Farmácia Madalena - Ilha do Pico, Açores

A Montanha do Pico não se deixa ver. Nem tão pouco o Piquinho, que ainda traz neve. Na vila da Madalena, há reboliço junto ao largo da igreja. Homens de pele queimada do sol e costas curvadas ao céu restauram o pavimento. Não faltam as máquinas.

Ainda não havia máquinas na ilha quando a Farmácia Madalena abriu portas, em 1957, numas instalações modestas da Rua Maria da Glória. Os calceteiros trabalhavam à mão. Também na farmácia os medicamentos eram manipulados. A electricidade produzida na ilha mal dava para a iluminação pública, que era desligada às onze da noite.

«Tempos difíceis», recorda Maria Jesuína Lemos Monteiro de Freitas, proprietária e directora-técnica. Com 85 anos, é a farmacêutica há mais tempo em funções no Arquipélago dos Açores. Assim como as fumarolas vulcânicas se misturam com a neblina da montanha, também a biografia de Jesuína se confunde com a história da sua farmácia e da própria ilha.

A desenvoltura da voz e do corpo denunciam uma mulher enérgica e forte. «O que me dá satisfação é ter saúde para continuar a ser farmacêutica. Sempre gostei da minha profissão».


Jesuína Freitas está ao leme da farmácia há 61 anos

Um dia, o pai disse-lhe que Farmácia era «um bom curso para uma rapariga». Ela acreditou e nunca mais parou de mostrar à comunidade a razão do progenitor. Mora na ilha do Faial e vem todas as manhãs para a farmácia de barco. É assim há 61 anos. Sai de casa de manhã cedo, mete-se no carro e conduz até ao Cais do Faial. Só regressa na lancha das seis da tarde. As travessias são os únicos momentos de pausa no dia. «Na viagem, enquanto estou ali sentada, durmo», conta, divertida. Não se cansa? «Cansava-me mais ficar em casa».

Na farmácia, não pára quieta. «Há sempre coisas para fazer» e ela nunca foi mulher para andar de braços caídos. Ainda faz atendimento ao balcão, mas nos últimos anos trabalha mais nos bastidores. Verifica os stocks, faz as encomendas e controla ela própria a entrada dos medicamentos, a sua tarefa preferida. Telefona quase todos os dias para os distribuidores do Faial. «O primeiro barco atraca às 11 horas no Cais da Madalena. Depois é só ir ali abaixo buscar os medicamentos». Há dois anos, fixou-se na ilha um fornecedor que já lhe resolve muitos problemas. «Estou muito satisfeita, porque é só telefonar e ele vem logo trazer-me os medicamentos».

No Pico não há hospital. Três centros de saúde e cinco farmácias asseguram a assistência aos 14 mil habitantes da ilha. Alguns médicos especialistas, oriundos de São Miguel, da Terceira e do Faial, aparecem a dar consultas. «Um vem de dois em dois meses, outro de três em três. As pessoas inscrevem-se e depois vão sendo seguidas», relata Jesuína Freitas. A maternidade também fica no Faial. «Há anos que ninguém nasce no Pico! Já houve foi nascimentos na lancha, durante a travessia», desabafa ainda a farmacêutica.

No início, a Farmácia Madalena era a única da vila. As pessoas passavam o dia no campo ou no mar, na caça ao cachalote ou na pesca do atum. Quando regressavam a casa «davam muitas vezes com os filhos doentes». Maria Jesuína já sabia que à noite tinha um pico de trabalho. «Lá vinha eu, fosse dia de semana ou domingo», recorda. Durante 40 anos assegurou o serviço de disponibilidade nocturna, sete dias por semana.


O sistema de saúde da ilha compõe-se de cinco farmácias e três centros de saúde

O Centro de Saúde da Madalena, agora, está aberto 24 horas por dia. Naquele tempo, era diferente. «Ainda não havia as urgências. Aqui na farmácia encontrávamos sempre um funcionário disponível para nos ajudar », recorda José Manuel Bettencourt, 66 anos, antigo funcionário do Banco Comercial dos Açores. «A Farmácia Madalena é um património cultural da nossa terra, um tributo à amizade entre pessoas que se conhecem há muito tempo», enfatiza.

A proximidade, sobretudo nos momentos de aflição, cimenta relações para a vida. «Vir aqui é sinónimo de visitar velhos amigos», afirma Manuel Soares, 70 anos. Este antigo oficial de operações da SATA Internacional – Azores Airlines mora há 38 anos em Ponta Delgada. Quando regressa à ilha do Pico, para uns dias de férias, visita sempre a farmácia. «Sabe, às vezes passo por aqui sem necessidade… Venho cá só para conversar com estas pessoas que conheço, e nem compro nada».


Manuel Soares passa aqui para rever os amigos sempre que vem de férias ao Pico​

A economia local assenta na vinicultura, agricultura, pesca e pecuária. O povo que não emigrou trabalhou a vida inteira sem acumular fortuna. A Farmácia Madalena criou tradição na dispensa de medicamentos a fiado. «Antigamente havia muito essa situação porque as pessoas eram muito pobres». Ainda hoje o crédito é uma realidade. «Temos alguns casos…não sei é se são por pobreza ou por descuido», diz a directora-técnica.

Embalada pelas águas do Atlântico, Jesuína Freitas não prevê parar tão cedo. Enquanto tiver forças, vai continuar a apanhar o barco todos os dias, com destino à sua farmácia. Ainda tem um último sonho: «Tenho um neto, que está a estudar Ciências Farmacêuticas. Só desejo que ele acabe o curso e que eu ainda cá esteja para lhe passar a pasta».

 

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