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28 março 2017
Texto de Carlos Enes Texto de Carlos Enes Fotografia de Ana Marta Fotografia de Ana Marta

A guardadora de remédios e bonecas

​​​​​​​​​​​​​​​Maria Mendes Pais, 91 anos, directora-técnica da farmácia Ribeirabravense

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Até podia ter sido, mas não era de ouro o berço em que nasceu, no dia 26 de Abril de 1927.

– É uma menina!

Onze anos passados do primeiro bombardeamento alemão à Baía do Funchal, dez anos depois do segundo e das aparições de Fátima, pouco mais de oito de armistício e paz podre na Europa, História e Fé conspiraram-lhe o nome.

– Maria da Paz.

Feito o baptismo, vamos conhecer como era a terra. Raul Brandão faz de guia, já que lá foi em Agosto de 1924. Pelo cheiro a banana no ar, reconheceu a Madeira ainda no escuro, a bordo do Vapor S. Miguel. Ao amanhecer, abriu a boca de espanto ao iniciar-se ​​naquela paisagem «materialista e devassa, ao mesmo tempo bela». Uma serra a subir aos socalcos, do mar ao céu, onde «só o homem, só o homem!» se atreveria a cultivar.

– É um panorama que lembra carne viva.

Do Funchal à Ribeira Brava, onde se deu o parto, mesmo no Verão era mais de uma hora de caminho. O escritor estranhava «a rapidez estúpida» dos primeiros automóveis. Repugnou-o igualmente ir deitado «numa rede suspensa por uma vara, às costas de dois homens que caminham apegando-se a paus». Para conhecer o interior da ilha, subiu antes a um carro de bois enfeitado e florido.

– Iá! Iá!

Os doentes mais graves também apareciam ao doutor José Azerêdo Pais deitados numa rede. Não havia macas. As ambulâncias da época eram os barcos da pesca do atum e do espadarte. Salvavam-se mais vidas assim do que se andassem por terra. O médico da Ribeira Brava tinha uma relação íntima com o ancoradouro, onde também ia receber matérias-primas para manipular ele próprio os medicamentos. Quando rebentou a guerra, sofreu com a falta de substâncias terapêuticas e de excipientes. Até o açúcar foi racionado. Português de Viseu, instruído, mas também desenrascado, desenvolveu um arsenal terapêutico mais vasto do que os alemães. Uma altura, António César, miúdo da casa da frente, irmão de Maria da Paz, caiu gravemente doente dos pulmões. Sem bombas, curou-o com um detalhado programa de banhos terapêuticos, cujo segredo se perdeu no tempo. Maria da Paz cresceu com veneração ao doutor e atracção fatal pela Farmácia.



– Tive uma infância feliz.

Mais de quarenta xaropes e tinturas saíam para a rua misturados com o cheiro a fruta e a flores. As crianças das duas famílias, cinco de um lado e quatro do outro, brincavam todas juntas. Quem lhes dera abrir aqueles garrafões de cinco litros cheios de desinfectante à base de iodo! Era o betadine da época, destilado na farmácia. Maria da Paz viria a casar com Fernando, um dos filhos do médico José Azerêdo. Só começaram a namorar nos tempos de faculdade, em Lisboa, mas a centelha do amor acendeu-se nalgum dia da infância.

– Não lhe sei explicar. Desde pequena que gostava dele.

Os meninos da Ribeira Brava aprenderam a nadar com um tio de Maria da Paz e a pedalar na mesma bicicleta. A infância e a pobreza generalizada aboliam as classes sociais. «A Ribeira Brava é uma terra miserável e contam-se por centenas os doentes que se não tratam por falta de recursos», queixar-se-ia ao Grémio a farmacêutica Olímpia Macedo, primeira directora-técnica da Farmácia Ribeirabravense. A sucessora havia de crescer protegida, tanto da miséria como das tentações da riqueza.

Só aos 20 anos soube que o pai era rico. Nunca deixou que vivêssemos com mais do que o suficiente.

O dinheiro só se exibia em libras esterlinas. A ilha era polvilhada por «inglesas de cabelo curto, vestidas de branco», cujos maridos controlavam o negócio do vinho. Raul Brandão regressou contagiado pela ‘britanofobia’ madeirense, tropical sintoma da eterna luta entre ricos e pobres, os detentores de capital e os fornecedores de trabalho nos contratos de colonia. O escritor revelou-se portador exímio:

Esta ilha é um cenário e pouco mais – cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e desprezo absoluto por tudo o que lhe não cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em inglês e tudo preparado e maquinado para inglês ver e abrir a bolsa.

Depois de um trovão assim, não admira que as bonecas inglesas de Maria da Paz se tenham escondido. Eram «muito bonitas» e a menina «gostava muito delas». Mais uma razão, «só se devia brincar um bocadinho». Conservou-as guardadas numa gaveta. Maria da Paz Pais tem até hoje um lugar exacto para cada coisa – e não adianta a ninguém procurar noutro sítio. A Farmácia Ribeirabravense foi a primeira da Madeira a guardar os medicamentos em módulos de gavetas. Em 1987, a directora-técnica tropeçou num folheto publicitário da Imedisa, fabricante espanhol de mobiliário sanitário. Contraiu um empréstimo bancário pela primeira vez na vida, de 3 mil contos. Mas deixou os medicamentos en su sítio.

– Sou muito arrumada, não gosto que ninguém remexa nas minhas coisas.

Só as bonecas a ouviram chorar, agarrada ao travesseiro, quando o tio Nicolau, professor de Matemática em Lisboa, convenceu o cunhado António a mandar a filha ao seu cuidado, para fazer os estudos do liceu. Embarcou em Outubro, no barco Carvalho Araújo. Passou Natal e Páscoa em Lisboa, só regressou nas férias de Verão do ano seguinte. Tinha 11 anos.

– Compreendo bem o Cristiano Ronaldo quando ele fala de como sofreu para sair daqui nessa idade.

Com 91​ anos, ainda é ela a tomar conta dos números e a compor as montras da farmácia. Decorou uma com um CR7 de barro, equipado a rigor com as cores da selecção nacional. E uma bola – dentro da baliza. Se um irmão desistiu, Maria da Paz venceu o desafio de Lisboa. O tio era um homem austero e inflexível. De semanada, dava-lhe o dinheiro certo para um bolo e o eléctrico. Se quisesse saborear o segundo, teria de ir a pé de casa, na Rua Augusta, até ao Liceu Pedro Nunes, na Estrela. Ela deveria aprender a tomar conta das suas coisas, sem jamais perder alguma. Um dia, apeou-se no Rato, como sempre, e deixou o guarda-chuva a viajar sozinho no 24, até Campolide. Ficou apavorada de susto. Teve sorte, conseguiu recuperá-lo antes do tio dar pela falta. Outra vez, não soube responder quando Nicolau lhe deu à escolha ir ver um de dois filmes. Como castigo, ficou meses sem ir ao cinema.

Hoje agradeço-lhe, porque sei sempre dizer que sim ou que não. E isso é muito importante na vida.



No Verão de 1939, ela regressava à Madeira de férias e o mundo recaía no inferno da guerra. A meio da viagem, o barco estancou de repente. Alarme a bordo, submarino alemão por perto. Passageiros em silêncio, todos a rezar para dentro. Aquilo durou um tempo que pareceu uma eternidade à adolescente. Os pais decidiram então que seria mais seguro deixá-la continuar os estudos no Funchal. Só perto do final do conflito regressou a Lisboa e ao Liceu Pedro Nunes, para fazer o sexto e sétimo anos. Dispensou de exame. Não quis ir para Medicina. Para ela, a vida de médico seria incompatível com a de mãe de família. Teve cinco filhos. Um deles ficou com o nome, a profissão e o hábito de visitar os doentes do avô. Ela ingressou antes na Faculdade de Farmácia de Lisboa, curso de 1945. Não era a melhor aluna, mas licenciou-se sem falhas.

Prefiro uma pessoa com bom senso a outra muito inteligente. Comete menos erros, sabe?

Antes de dar um estalo a um filho, aprendeu a esperar dois dias. Ao fim desse tempo, voltava a pensar na atitude certa. Assim que percebeu este método como adequado à educação das crianças, nunca mais o abandonou.

– Sou teimosa, mas a minha teimosia tem dado resultado.

Com 23 anos, estava enfim na Madeira para a vida. O futuro marido ainda ficou mais uns tempos a acabar o curso em Coimbra. Ela teve logo uma proposta para ocupar um lugar de farmacêutica hospitalar, no Hospital do Funchal.

Nem pensar! Venho sem prática. E eu sou uma pessoa responsável.

Aceitou instalar um pequeno posto farmacêutico para os pescadores de Câmara de Lobos, essencialmente dedicado a fornecer leites gratuitos a bebés e mulheres grávidas. Antes de assinar contra​to, pôs como condição ao capitão do Porto do Funchal horário compatível com um estágio na Farmácia Inglesa, onde aprendeu a servir o público com segurança. Andou naquilo três anos. Só depois se casou e assumiu a direcção-técnica da Farmácia Ribeirabravense. Deixou saudades no porto de mar.

Senhora dr.ª: Era favor de vir cá a casa três vezes por semana, que era para não se estranhar. Com agradecimentos do Paquete.

Ainda hoje exibe este bilhete como um troféu de vida. Não gosta de perder nada. Guarda os exames médicos e as contas da casa numas caixas que ofereceram ao pai num Natal longínquo. E também recortes de jornal, com pensamentos e poemas. Por exemplo, uma história que contou aos filhos, de um menino que chegava sempre a casa com queixas dos colegas de escola. Um dia, a mãe mandou-o pegar na almofada da cama e abri-la com uma tesoura no quintal.

Agora, vai buscar as penas para voltares a dormir descansado. Não consegues, porque elas voam ao vento? As tuas mentiras são assim.​
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