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2 abril 2019
Texto de Paulo Martins Texto de Paulo Martins

«A Farmácia do meio pequeno é a enjeitada da nação»

​​​​​​​​Farmacêutico-historiador levantou assim a voz há 50 anos.

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Ninguém tem o direito, e muito menos o Estado, de sacrificar determinada classe em benefício de outras. Todos vivemos as alegrias da Nação, ou vivemos a amargura das horas más, à sombra da mesma bandeira e sob a tutela da mesma Constituição. Não há um lugar para eleitos e outro para sacrificados». Estas palavras não foram proferidas ontem. Datam de 1964, imagine-se! O tempo, todavia, não lhes roubou sentido, nem tampouco actualidade. A Constituição mudou, é verdade, mas a Nação e a bandeira são perenes. E, infelizmente, também persistem muitos constrangimentos ao exercício da actividade farmacêutica fora dos grandes centros. Era para a vivência desses farmacêuticos que o autor daquela frase, Joaquim Torrinha, chamava a atenção há 55 anos.

O farmacêutico de Vila Viçosa, falecido em 2014, sabia bem do que falava. «A Farmácia do meio pequeno é a enjeitada da Nação, mas nem por isso deixa de lhe devotar o amor que se tem às mães. E por ser assim é que não nos falta a coragem de lutar para a engrandecer, porque desta forma engrandecemos a Nação», disse, na mesma ocasião: uma palestra sobre “O farmacêutico rural”, que seria publicada como separata na Revista Portuguesa de Farmácia. E não é que, sendo na época outros os problemas – «contratos ruinosos» com a Previdência e baixas percentagens de lucros – mantém validade a “receita” que então passou? A saber: que o Estado utilizasse os conhecimentos dos farmacêuticos «nas mais variadas funções de saúde e higiene pública», incluindo o que apelidava de trabalho de «catequização sanitária». Porque «há ramos de actividade em que a presença do farmacêutico cabe tão bem, que só aos cegos de espírito é lícito admitir que neguem a sua presença lá». 


Joaquim Torrinha recomendou a Salazar o «aproveitamento dos conhecimentos dos farmacêuticos nas mais variadas funções de saúde e higiene pública»

Joaquim Francisco Soeiro Torrinha licenciou-se pela Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto. Talhado para a docência, chegou a tomar posse como assistente contratado, mas a morte inesperada do pai obrigou-o a um apressado regresso às origens, para tomar conta da sua farmácia. Filho único, já que as duas irmãs faleceram prematuramente, tinha de amparar a mãe… e de saldar a gorda dívida herdada. Coração mole, o pai nunca deixara os doentes privados de medicamentos, ainda que só os pagassem após a colheita da azeitona e a venda do azeite. Atitude típica do que designava por «farmacêutico rural».


Em 1942, quando Torrinha, filho, começou a exercer, a Farmácia Central, rebaptizada com o seu apelido em homenagem ao progenitor, mantinha a porta quase sempre aberta, apesar de o proprietário não ter quem o ajudasse. Não havia escalas de serviço nocturno e só o domingo era reservado ao descanso. Nesse tempo, o Hospital de Vila Viçosa dispunha apenas de dois enfermeiros – ou melhor, de dois barbeiros que faziam uma perninha como enfermeiros. Joaquim e a esposa Fernanda eram, então, os únicos farmacêuticos em todo o Alentejo credenciados com o título de especialistas em análises clínicas. Para acorrerem às necessidades, faziam périplos pela região – hoje Évora, amanhã Estremoz…

Contudo, não há interioridade que sufoque a dedicação e o empenho. Se prova faltava, Torrinha fez questão de a apresentar ao longo da vida. A fixação em Vila Viçosa nunca o impediu de se incorporar no batalhão de defesa da dignidade e do prestígio da Farmácia. Era coisa que lhe estava na massa do sangue. «Em toda a minha vida me mantive sempre no cerne das questões que de algum modo tinham a intenção, às vezes não conseguida, de melhorar o exercício da actividade farmacêutica», escreveu em 2002, num pequeno opúsculo destinado a assinalar o centenário da Farmácia Torrinha.

Deixou a sua impressão digital nas lutas decisivas para o sector. Em 1941, estava o regime ditatorial para lavar e durar, teve a coragem de emitir parecer negativo, como líder da associação de estudantes da faculdade, a um anteprojecto de lei danoso para a profissão, por equiparar agentes técnicos a farmacêuticos, em matéria de responsabilidades. Na década de 1960, contestou o quadro legal em gestação, susceptível de ameaçar os farmacêuticos especialistas em análises clínicas, e bateu-se pela lei da propriedade de farmácia, que entrou em vigor em 1965. Ou não tivesse acompanhado o percurso do principal mentor do diploma, o professor Correia da Silva, seu mestre e amigo, com quem colaborou amiúde.



Particularmente activo em congressos e conferências, escreveu sobre os problemas da Farmácia, em publicações profissionais, a partir de 1939. A Sociedade Brasileira de História da Farmácia atribuiu-lhe, em 1956, o estatuto de sócio correspondente. Os seus interesses, porém, extravasavam a área de formação de base. Também licenciado em Ciências Histórico-Pedagógicas, assinou artigos sobre historiografia calipolense e azulejaria antiga. Durante anos, manteve na Rádio Campanário um programa de divulgação.

Em política é que nunca se quis meter. «A "nossa" Democracia, aqui na Farmácia Torrinha, é o respeito e a solidariedade que nos une, cada um no seu lugar, mas sempre com o sentido de servir a todos o melhor que puder e, às vezes, até com sacrifício», assinalou um dia.


ESPÓLIO CONFIADO AO ARQUIVO ELEPHANTE

Publicações profissionais, em alguns casos dos anos 40 do século XX, editadas pelos extintos Grémio e Sindicato Nacional das Farmácias, pela Associação Nacional das Farmácias e por universidades; obras técnicas tão antigas que podem carecer de restauro; livros de actas de congressos e simpósios; documentação diversa. O rico espólio de Joaquim Francisco Torrinha, essencialmente bibliográfico, vai ser confiado à ANF, que através da equipa do projecto Elephante cuidará do tratamento arquivístico. 

Rui Torrinha, filho do farmacêutico calipolense homenageado em Janeiro passado, por ocasião do centenário do seu nascimento, cumpre assim o desejo dos pais de entrega do acervo reunido durante anos a uma instituição do sector. Está em causa um legado afectivo, evidentemente; e, em simultâneo, parcelas da história da Farmácia Torrinha, fundada no longínquo ano de 1902. Uma farmácia sempre aberta a tertúlias de monárquicos como o dono. Ou não fizesse a rainha D. Amélia questão de cumprimentar Joaquim Lourenço Torrinha, quando, de férias na vila do Paço Ducal, passava pela então Rua da Corredoura, hoje Florbela Espanca.
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